Aborrece-me sumamente ter de ouvir ministros, professores dos vários graus de ensino, jornalistas, estudantes - eles e elas - a dizer: "Houveram encontros", "Poderiam haver mais possibilidades", "Haviam tantas mulheres que os homens tiveram medo", "Podem haver outros mundos."
Seria preciso perguntar-lhes qual é o sujeito do verbo. Não há paciência!
Apareceram agora os resultados dos exames e, mais uma vez, foi o desastre: a Matemática teve uma ligeira melhoria em relação ao ano transacto, mas, mesmo assim, 64 % das notas foram negativas, a média geral das notas de Química foi de 6,9 valores e a de Física, 7,7.
Mas, para mim, o mais impressionante foram os resultados dos exames de Português: nota negativa para metade dos alunos, o dobro em relação ao ano passado. A palavra é mesmo essa: um desastre!
E a mim impressionam-me particularmente os resultados dos exames de Português, porque há muito tenho a ideia de que o problema essencial da Matemática, da Física e da Química é mesmo o português, a língua portuguesa. Porque uma língua é um mundo com uma determinada estrutura. O mundo em português e em alemão, por exemplo, não é exactamente o mesmo - Heidegger chamava a atenção para o facto de, em última análise, a sua filosofia só ter sido possível a partir da língua alemã. George Steiner não se cansa de repeti-lo: "Como Freud nos ensina, é preciso virar os grandes mitos ao contrário, eles dizem o contrário do que parecem dizer. Babel, longe de ser uma punição, é talvez uma bênção misteriosa e imensa. As janelas que uma língua abre dão para uma paisagem única. Aprender novas línguas é entrar em novos mundos."
Cá está: quem não domina uma língua - no nosso caso, o português - que mundo tem? Qual é o seu mundo e, sobretudo, qual é a estrutura de mundo que possui? Como pode entrar na Matemática, na Física ou na Química sem a língua que lhe dá um mundo e uma estrutura de mundo?
Sinceramente, gosto de ser fiel ao preceito: ne sutor ultra crepidam - o sapateiro não vá além da sandália! Por isso, peço a compreensão do leitor. É que gostaria de dizer que não há possibilidade de Portugal sair do marasmo e mesmo da pobreza crescente sem forte investimento na educação. Mas, quando digo investimento, não me refiro apenas ao investimento financeiro, porque o que está sobretudo em causa é a mudança de mentalidades e dos métodos de trabalho e inteligência e esforço.
Tive a sorte de ter tido excelentes professores. Devo, porém, acrescentar que talvez aquele a quem mais devo é ao professor da escola primária, como então se dizia. Era o senhor Amadeu dos Carvalhos (Carvalhos é o lugarejo). Foi ele que, durante os três anos da tal escola primária, me ensinou a ler e me introduziu na distinção entre um "que" relativo e um "que" integrante, me explicou como se dividem orações, me obrigou a fazer cópias e a escrever todas as semanas pequenas "redacções", que ele corrigia, ensinando depois um modo melhor de pegar no assunto.
Julgo que é isso que é preciso: ler, ler muito - afinal, ler vem do grego legein, através do latim legere, e em conexão com legein (dizer, reunir) está o Logos, a razão, significando também palavra, argumento, ordem, relato -, aprender a dividir orações, escrever composições literárias - haverá modo melhor de abrir à investigação e obrigar à exposição lógica de um tema, com uma introdução, um desenvolvimento argumentado e uma conclusão? Mas quem estará disposto a corrigir, a dar sugestões outras, todas as semanas?
Voltando aos erros do princípio - "Houveram encontros", "Poderiam haver mais possibilidades" -, o que se passa é que o sujeito é um singular indefinido: "ele" houve encontros, "ele" poderia haver mais possibilidades...
O francês explicita: il y a (há), il y avait (havia) - «ele tem aí», «ele tinha aí». O alemão também é explícito e, na explicitação, é muito interessante: es gibt (há), es gab (houve, havia) - «isso dá», «isso deu, dava». Por exemplo, es gibt Sterne (há estrelas): «Isso dá estrelas». Segundo a língua alemã, na raiz do mundo, há um Dar originário, que dá tudo o que há. Dá sóis, dá animais e ervas, oceanos, dá homens, mulheres, crianças, jovens, dá músicas, belezas antigas e novas...
O que é o Ser? É Dar. Para os crentes, Deus é Dar, esse Dar originário que põe no ser tudo o que há. E, como diz Miguel Baptista Pereira, à maneira de quem dá generosamente, esconde a mão.
Por isso, há o que há e ninguém O vê. Então Heidegger associava denken e danken: pensar e agradecer.
[artigo publicado no jornal português "Diário de Notícias", do dia 23 Julho de 2006.]