1. A importância actual do ensino das Línguas e da Tradução no Espaço Europeu
Gostaríamos de iniciar com um primeiro paradoxo, que nos vem do grande linguista americano Noam Chomsky: segundo Chomsky, apesar de existirem no mundo mais de 7000 línguas (ou muito mais se considerarmos os dialectos), o ser humano fala «uma única língua» e isso porque as diferenças entre as diversas línguas são só diferenças aparentes. No fundo, diz Chomsky, todas as línguas do mundo se baseiam num conjunto muito reduzido de princípios biológicos universais, inscritos no genoma da espécie Homo Sapiens, ou seja cada língua, à parte as suas diferenças lexicais, é uma combinação particular destes poucos parâmetros, que constituem a “estrutura profunda”, por oposição à “estrutura de superfície”, de todos os idiomas existentes.
Entramos aqui, como é evidente, para o polémico território da Biolinguística, a Ciência que procura estudar a linguagem humana como um fenómeno biológico. É uma tese fascinante, mas, como já salientaram muitos linguistas, facilmente contestável: de facto, o «órgão» da Linguagem não pode ser comparado a um outro órgão qualquer do corpo humano, como por exemplo o fígado ou os pulmões, que são efectivamente iguais num japonês ou num francês. A utilização da linguagem duplamente articulada reflecte com certeza uma capacidade que só os seres humanos são capazes de ter, mas é também, e nós diríamos sobretudo, uma capacidade social e colectiva. Saussure já o ensinava no início do século XX e as suas teorias continuam perfeitamente actuais. Assim, o «mistério» do porque não exista no mundo uma única língua é explicado pela componente «social e pública» da linguagem humana.
Julgamos, contudo, estimulante e fecundo o pensamento de Chomsky, se considera como um pensamento utópico virado para o futuro, ou seja como a esperança que os seres humanos, falando a mesma língua, possam entender-se e viver em paz, ultrapassando os conflitos babélicos em que se encontram actualmente.
Porque, e como afirmava Umberto Eco:
«Não conhecer as Línguas produz intolerância»
E quando Eco fala de Línguas, refere-se na realidade às mais complexas realidades culturais.
Uma temática, parece-nos, de grande actualidade. Basta lembrar os recentes acontecimentos ligados às caricaturas de Maomé e todas as manifestações de fanatismo e racismo que circulam hoje pelo mundo, tanto no Oriente como no Ocidente.
Contestáveis ou não, as teorias da Biolinguística apontam para a possibilidade e capacidade que qualquer ser humano tem de poder aprender uma qualquer língua, materna ou não materna.
Propriedade que, nesta época de globalização acelerada, é cada vez mais importante.
O apelo é então este: devemos aprender outras línguas, além da nossa materna, para comunicarmos, para compreendermos melhor os nossos vizinhos, para evitarmos todos os fenómenos de obtuso provincianismo e de intolerância. E o papel da Tradução, da profissão dos Tradutores e dos Intérpretes, é, nesse sentido, como é evidente, de enorme importância.
Mas, debruçando-nos com mais atenção sobre o Espaço Europeu, constatamos a existência dum segundo paradoxo: a União Europeia utiliza cada vez mais o Inglês como língua padrão, como língua franca, assim como o Latim o era no passado, mas ao mesmo tempo defende abertamente o multilinguismo dos seus habitantes, incentivando-os a aprender, além da sua língua materna, pelo menos mais duas outras línguas estrangeiras. Até que ponto será isso possível, até que ponto as línguas ditas menores não serão definitivamente esmagadas pelo imperialismo dum único idioma?
Uma preocupação partilhada igualmente pelo filósofo George Steiner que, no seu recente ensaio intitulado «A Ideia de Europa» (trad. Port., Editorial Gravida), afirma:
«O génio da Europa é aquilo que William Blake teria chamado “a santidade do pormenor diminuto”. É o génio da diversidade linguística, cultural e social».
Steiner continua, salientando:
«Não há “línguas pequenas”. Toda a língua contém, articula e transmite não só uma carga única de recordação vivida, mas também uma energia em evolução dos seus tempos futuros, uma potencialidade para o amanhã. A morte duma língua é irreparável, reduz as possibilidades do homem. Nada ameaça a Europa mais radicalmente – as suas raízes – do que a onda detersiva e exponencial do anglo-americano, e dos valores e imagem mundial uniformes que o “Esperanto” devorador traz consigo».
No seu ensaio, Steiner tenta sobretudo uma definição da Europa, e fá-lo procurando diversos símbolos que a possam caracterizar. Lembramos ainda as palavras do filósofo:
«O café; a paisagem a uma escala humana que possibilita a sua travessia; as ruas e praças nomeadas segundo estadistas, cientistas, artistas e escritores do passado (...); a nossa descendência dupla de Atenas e Jerusalém; e, por fim, a apreensão dum capítulo derradeiro, daquele famoso ocaso hegeliano que ensombra a ideia e a substância da Europa mesmo nas suas horas mais luminosas».
A estes cinco axiomas, nós acrescentaríamos um sexto: o axioma das Línguas. Línguas como “lugar de memória” e como veiculo de Culturas.
Como proteger então essa diversidade e pluralidade linguística? Pensamos que, a nível oficial, nos diversos países comunitários, muito pouco se fez até agora e que há ainda um longo caminho a percorrer.
Deixamos, por enquanto, uma sugestão: que no ensino secundário, os alunos tenham uma maior possibilidade de escolha relativamente às línguas estrangeiras. A escola, pensamos, não devia limitar-se a oferecer o inglês, o francês e o alemão, como muitas vezes acontece, pelo menos na escola portuguesa, mas abrir o leque até a línguas consideradas menores, como o polaco, o holandês, o lituano, ou então a línguas que não fazem parte do espaço europeu, mas que são cada vez mais importantes, como o árabe, o chinês, o japonês, o russo...
Relativamente a esta permanente procura e defesa duma identidade europeia, queremos também referir a posição do filósofo alemão Habermas, que nos parece interessante, embora contraste com a posição de Steiner e de todos os paladinos da importância na Europa duma unidade linguística.
Habermas é bastante crítico e pessimista no que diz respeito à unidade europeia. Afirma que, no espaço europeu, não existe ainda uma verdadeira «identidade», nem política, nem social, nem cultural e ainda menos linguística. Mas este facto não é considerado negativo, porque, segundo Habermas, para chegar a uma verdadeira união, é mais importante criar uma «comunidade de cidadãos», ligados entre eles por vínculos civis e não por uma identidade cultural. Ou seja, os cidadãos da Europa devem encontrar um acordo sobre o mesmo processo democrático que constitui a Europa, nomeadamente: a solidariedade social; o Estado Providência; a inclusão e não a exclusão social e económica; a utilização dos media para comunicar conhecimentos e ideias; a construção duma esfera pública comum.
Para compreendermos melhor a realidade europeia, daremos agora uma breve panorâmica da sua situação linguística.
A União Europeia tem cerca de 450 milhões de habitantes, 25 países membros e 20 línguas oficiais.
As línguas são:
O alemão, o checo, o dinamarquês, o eslovaco, o esloveno, o espanhol, o estónio, o finlandês, o francês, o grego, o húngaro, o inglês, o italiano, o letão, o lituano, o maltês, o neerlandês, o polaco, o português e o sueco.
A maior parte destas línguas pertencem à família indo-europeia, cujas sub-famílias principais são a germânica, a românica, a eslava e a céltica. O grego, o lituano e o letão são também indo-europeias, mas não fazem parte de nenhuma das sub-famílias mencionadas. O húngaro, o finlandês e o estónio provêm das línguas hungro-finesas. O maltês é uma mistura de árabe e de italiano.
O alemão é a língua materna mais falada na União Europeia, com cerca de 90 milhões de falantes nacionais.
O francês, o inglês e o italiano têm cerca de 60 milhões de falantes, mas o inglês é a primeira língua estrangeira para cerca de um terço dos habitantes da União.
O actual objectivo da Comissão Europeia é que cada cidadão da União possa dominar, além da sua língua materna, mais duas línguas estrangeiras. A aprendizagem das línguas deve iniciar-se muito cedo, em idade pré-escolar, e deve continuar ao longo da vida.
A União Europeia respeita e utiliza todas as 20 línguas comunitárias, respondendo a critérios de «democracia, transparência e direito à informação», mas é interessante salientar como na realidade, por óbvias razões económicas, os trabalhos da Comissão se efectuam no dia-a-dia unicamente em três línguas principais: o inglês, o francês e o alemão. É apenas na fase final que os textos são traduzidos para as 20 línguas oficiais.
Igualmente, no Parlamento Europeu, sempre por razões económicas, funciona um sistema de línguas «pivot», que são: o inglês, o francês, o alemão, o italiano, o polaco e o espanhol. Por exemplo, um documento escrito em sueco será traduzido primeiro para uma destas línguas «pivot» e a seguir traduzido, a partir desta língua, para todas as outras.
Também os intérpretes utilizam um sistema semelhante. Por exemplo, o discurso dum orador maltês será interpretado só para algumas das línguas «relais» e não para todas as 20 línguas oficiais.
Actualmente, somente 26% dos europeus afirmam conhecer a sua própria língua e duas outras. Como se pode ver, é ainda uma percentagem muito baixa.
2. A “Reforma de Bolonha”
A “Declaração de Bolonha” foi assinada a 19 de Junho de 1999 e subscrita pelos Ministros de Educação de 29 Estados Europeus. Para bem percebermos o significado profundo desta «revolução» educativa, devemos situar este processo num contexto mais amplo, que é o da postura competitiva da Europa relativamente a outros blocos do Planeta (lembramos, a esse propósito, o Conselho Europeu de Chefes de Estado e de Governo que teve lugar, em Lisboa, em Março 2000 e que culminou com a emblemática «Declaração de Lisboa»).
Esta preocupação competitiva não é nova para a Europa, basta pensar na fortíssima concorrência exercida, já há muitos anos, pelos Estados Unidos, quer economicamente, quer, justamente, na área da educação. A fuga dos nossos melhores cérebros para as universidades americanas não é um fenómeno recente, mas este quadro torna-se mais grave quando se considera a concorrência dos países asiáticos, como a Índia, a China e a Coreia. Segundo um recente estudo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a Europa está em risco de perder a batalha da educação e da qualificação dos seus recursos humanos. Com excepção da Finlândia, que soube revolucionar o seu sistema educativo, os outros países europeus continuam a marcar passo. Por exemplo, considerando o número de jovens adultos que têm uma formação universitária, a França, o Reino Unido e a Itália não melhoram a sua posição e a Alemanha até regride. Dados alarmantes, se considera que nestes países a “Reforma de Bolonha” já foi aplicada há vários anos! O que faz pensar que ou a «doença educativa» da Europa é muito mais profunda, ou então, hipótese mais provável, que os princípios da Reforma não foram bem aplicados.
De qualquer modo, é evidente o cenário de crise e de incerteza que atravessa o território educativo europeu. Como nos lembra o Prof. António Teodoro, que, na “Revista Lusófona de Educação” n.º 5, ano 2005, cita as palavras do sociólogo Boaventura Sousa Santos, “as Universidades passam por três situações de crise: uma «crise de hegemonia», por deixar de ser a única instituição no domínio do ensino superior e da produção de pesquisa; uma «crise de legitimidade», ao deixar de ser uma instituição consensual em face da contradição entre a hierarquização dos saberes especializados e a reivindicação da igualdade de oportunidades; e uma «crise institucional», resultante da contradição entre a reivindicação à autonomia e as pressões crescentes do mercado e da sua responsabilidade social”.
A “Reforma de Bolonha”, que deverá ser aplicada totalmente até 2010 (lembramos que Portugal é o único país de Europa que ainda não o fez), nasce assim como uma tentativa de ultrapassar este momento de crise e abrir novas perspectivas futuras ao Ensino Superior europeu.
Mas em que consiste a Reforma?
Citando a muito clara síntese que o Prof. João Vasconcelos Costa faz no artigo «Bolonha e a Educação Superior Privada» (publicado em «Quem tem medo da Declaração de Bolonha», Edições Universitárias Lusófonas, 2005), os princípios fundamentais da Reforma são os seguintes: •
Formações diversificadas e facilmente interpenetráveis
• Coexistência de formações académicas e vocacionais
• Interdisciplinaridade e banda larga
• Ênfase na aquisição de competências, mais do que na aquisição de informações
• Ênfase na aprendizagem orientada
• Importância da formação cultural e cívica
• Desvio significativo do papel tradicional do professor no ensino formal para o de facilitador da aprendizagem e tutor
Para conseguir estes objectivos, a Reforma põe em prática um conjunto de medidas, que são: •
A adopção dum esquema comum de graus compreensíveis e comparáveis, a saber:
Primeiro Ciclo (Licenciatura): 3 anos, 180 ECTS (Sistema Europeu de Transferência de Créditos)
Segundo Ciclo (Mestrado): 2 anos, 120 ECTS
Terceiro Ciclo (Doutoramento): 3 anos, 180 ECTS
• Sistemas de créditos ECTS compatíveis e abrangendo também as actividades de aprendizagem ao longo da vida
• Uma dimensão europeia na certificação da qualidade
• Mobilidade de estudantes e professores no Espaço Europeu
Como já foi mencionado, Portugal é o único país europeu que ainda não aplicou a Reforma de Bolonha, mas é muito provável que esta aplicação se concretize, finalmente, a partir do próximo ano lectivo 2006/07, quer no ensino público, quer no privado.
Permitir-me-ia, neste momento, chamar a atenção de todos para a nova lei de acesso ao ensino superior dos maiores de 23 anos, parte integrante da “Reforma de Bolonha”, que pretende “dinamizar a entrada no ensino superior dos adultos que estão na vida activa”, e que, se bem entendida por parte da Sociedade e das Universidades, poderia significar uma verdadeira “revolução cultural” e o verdadeiro advento da “Universidade para todos”.
A Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias tem sido reconhecidamente pioneira na preparação da “Reforma de Bolonha” e propõe-se implementá-la efectivamente em todos os seus cursos, incluindo, naturalmente, os seus cursos da área das Línguas, Culturas e Tradução.
*artigo publicado no "Semanário", em 5 de Maio 2006, sob o título A Reforma de Bolonha»: Novas Perspectivas para o Ensino das Línguas e da Tradução