Passaram-se cinco anos desde que atribuímos pela primeira vez o
Prémio Crónica João Carreira Bom, com o patrocínio da empresa Vodafone, a Eduardo Prado Coelho e, em anos seguintes, a Vasco Pulido Valente, Armando Baptista Bastos e a José Manuel dos Santos.
Neste ano, a Sociedade da Língua Portuguesa e o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa têm a honra e o prazer de atribuir este importante galardão a João Bénard da Costa, conceituado cronista, pela sua excelente qualidade e por toda uma longa carreira dedicada à crónica.
Termina, assim, hoje este ciclo do Prémio João Carreira Bom/SLP, cumprindo-se o compromisso que a Sociedade da Língua Portuguesa assumiu para com a Sra. D. Maria José Maupérin, viúva do jornalista
João Carreira Bom, ao adquirir a sua parte do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, prémio que só foi possível, graças ao patrocínio da empresa Vodafone e da elevada consciência cultural do Sr. Dr. António Carrapatoso a quem muito agradecemos.
Os nossos agradecimentos vão também para o júri, constituído por Urbano Tavares Rodrigues, Maria José Maupérin, Fernando Dacosta, Adelino Gomes, José Gabriel Viegas, em representação da Fundação Vodafone, José Manuel Matias, vice-presidente da SLP, e por mim
própria, por inerência do cargo.
Fazendo "jus" ao titular do prémio, João Carreira Bom, cuja pena era de uma grande elegância e argúcia, procurámos atribuir este importante galardão aos que, mais ou menos consagrados, se pautavam por uma escrita de qualidade, de conteúdos diversos, em que revelavam o seu espírito crítico, mas igualmente a sua dimensão cultural e humana.
Movidos apenas por um critério de qualidade, julgamos ter sido justos, mas temos consciência de que muitos outros notáveis cronistas ficaram de fora, pois muitos são os que se dedicam a este género, com arte, seguindo uma antiquíssima tradição de séculos, de que já várias vezes fizemos referência.
Mas falemos de João Bénard da Costa, prestigiado cronista, ensaísta, professor, escritor, actor, historiador de cinema.
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, convidado pelo Prof. Delfim dos Santos para seu Assistente na mesma Faculdade, foi-lhe impedida a carreira universitária por informação desfavorável da PIDE.
Ingressou no ensino liceal, tendo sido professor de História e Filosofia no Seminário Menor de Almada, no Externato Frei Luís de Sousa de Almada, no Liceu Camões em Lisboa e no Colégio Moderno,
entre 1959-1965.
Foi presidente-geral da Juventude Universitária Católica (de 1957/1958).
Desde muito cedo revelou a sua paixão pelo cinema, ligando-se ao cineclubismo, tendo sido dirigente de 57-60. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkianentre 1960-1963.
Em 1963, foi um dos fundadores da revista "O Tempo e o Modo", tendo sido chefe de Redacção e, depois, director de 1963 a 1970. De 64 a 66, foi investigador no Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian e, de 1966 a 1974, secretário executivo da Comissão Portuguesa da Associação Internacional para a Liberdade da Cultura.
Em 1969, assumiu funções como responsável pelo sector de Cinema do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, ao tempo da criação deste sector. Exerceu essas funções até 1991.
De 1973 a 1980, voltou ao ensino como professor de História do Cinema da Escola Superior de Cinema do Conservatório Nacional.
Nomeado sudirector da Cinemateca Portuguesa, em 1980, assumiu as funções de presidente da Cinemateca a partir de 1991.
Entre 1990 e 1995, foi presidente da Comissão de Programação da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF).
Em 1997, foi nomeado pelo Presidente da República Jorge Sampaio,
presidente da Comissão do Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas, cargo que continua a ocupar até ao presente.
Possui as comendas de Officier des Arts et des Lettres de França e a Ordem do Infante D. Henrique com que foi agraciado pelo Presidente Mário Soares em 1990. Em 1995, a Universidade de Coimbra
atribuiu-lhe o Prémio de Estudos Fílmicos, por ocasião da primeira deste prémio.
Recebeu ainda o Prémio Pessoa, em 2001.
Como actor de cinema, participou em películas assinadas por Manoel de Oliveira e João César Monteiro.
Publicou várias obras e ensaios sobre filosofia, pedagogia e história do cinema. Contam-se as suas monografias sobre Alfred Hitchcock( 1982), Fritz Lang (83), John Ford (83) e Joseph Von Sternberg, Nicolas Ray (1984) ou Howard Hawks (88). São também de referir as obras "O Musical" (1987), "Os Filmes da Minha Vida "(1990), "Histórias do Cinema Português" (1991), "Muito Lá de Casa" (1993), "O Cinema Português Nunca Existiu" (1996), "Do Lado de Cá da Rosa", "Nós, os Vencidos do
Catolicismo" (2003).
Em 27 de Maio de 2007, João Bénard da Costa escrevia no Público uma crónica intitulada "Duzentas Crónicas" a celebrar a ducentésima crónica neste jornal, contadas em cinco anos de colaboração onde afirmava:«Dei por mim a contar que, neste ofício de cronista já levo mais de
34 anos, quase metade da minha vida». E lembrava que começara no Expresso, puxado por Helena Vaz da Silva, numa coluna chamada "Os Actos e as Apostas" e que duraram até 1976.
Nesse ano muda-se para o "Diário de Notícias" e as crónicas passam a chamar-se "O Mal pelas Aldeias" que duraram até 1979. Houve um interregno de 10 anos.
Até que surgiu O Independente, em 1988, em que Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso lhe pediram para se dedicar a uma rubrica intitulada "Os Filmes da minha Vida". Aí permaneceu 13 anos até 2001, em que raramente teve outra matéria que não fosse cinema.
Depois, a convite de José Manuel Fernandes, passou a escrever no Público e João Bénard da Costa cita as palavras do seu pedido, chamando-nos a atenção para o que têm sido as suas crónicas: «Pediu-me ele que não fosse monogâmico, ou seja que andasse por muitas camas, mas só esporadicamente me reclinasse no leito cinematográfico. É o que tenho feito. O único programa foi guiar-vos para imagens e memórias cá de mim, puxadas de onde tiver que ser para onde me apetecesse que seja."
Na crónica "O Macaco e o Tritão", saída no "Público", João Bénard da Costa dizia:«Se me lembro do símio foi porque o meu princípio para estas crónicas é relativamente semelhante. Fora qualquer necessária compulsão, nascem de coisas que fui dando e tirando ao longo da semana, fiel à máxima, que estou seco de repetir, que o acaso é a única coisa que não acontece por acaso.»
E com isso vem a história da vida de Kierkegaard, dos seus amores e desamores pela bela Regina Olsen, dez anos mais nova, com quem casou e depois de quem se separou.
Muitos outros temas têm sido abordados em crónicas de grande interesse cultural, pois vasta é a cultura do seu autor.
Os seus textos são longos, densos que revelam e desvelam marcas e referências do seu imaginário cultural e da sua memória sempre viva e atenta. Os temas são os mais variados. Ora se debruça sobre a superficialidade dos homens, ora sobre as histórias que lhe foram contadas na infância sobre o regicídio, ora lembra o padre Manuel Antunes com a sua imensa cultura, o seu saber universalista,
movendo-se magistralmente entre a cultura greco-latina e o pensamento contemporâneo.
Mas ergue igualmente a sua voz contra a pena de morte de Sadam Hussein e cito uma passagem do seu artigo intitulado "De coisas esquisitas e da beleza portátil" pela sua actualidade e pertinência:«Mas o que eu nunca vira, e penso que nunca aconteceu, pelo menos nas televisões captáveis em Portugal, foi uma transmissão em directo para quase todo o mundo e todos os canais de um homem com a corda ao pescoço.Foi tudo tão esquisito como ouvir alguns senhores bispos a comparar o aborto à pena de morte, esquecidos de que a Igreja católica, até há pouquíssimo tempo, coexistiu pacificamente com essa pena e que, inseparáveis nos patíbulos, são as imagens dos padres misturados com as dos supliciados.»
Lembro ainda alguns dos seus comentários a pretexto das comemorações do 10 de Junho e de várias pessoas acharem que não se devia celebrá-lo. «Ficou o dia da suposta morte de Camões o dia de Portugal, o que nos deu uma originalidade que, no caso me parece feliz: sermos o único país do mundo que comemora o dia nacional no dia de um poeta, o que talvez se preste a muita retórica oca, mas é bonito e rima com a tal história da nossa pátria ser a língua portuguesa.»
No Dia de Portugal, em 2006, João Bénard da Costa termina o seu longo discurso, proferido em Setúbal e em homenagem a esta cidade, referindo-se a ela como «talvez das cidades de Portugal a que tem
mais para contar e da qual menos se conta» e prossegue:
«Nesta cidade, que viveu de conservantes, de conservas e de conservações, só a memória se não conservou. Salvaguardar o futuro? Mas o futuro só se salvaguarda quando se restituiu ao tempo o que cada tempo a seu tempo trouxe, verdade elementar mas verdade que tão pouco curámos e curamos.»
Enfim, muitas outras passagens das suas crónicas se poderiam citar, sobretudo as dedicadas ao cinema, de que Bénard da Costa é um dos mais prestigiados especialistas em Portugal. Ler as belíssimas crónicas cinematográficas que foram compiladas em "Muito lá de Casa" ou em "Os Filmes da Minha Vida" é como ter o prazer de ver um belíssimo filme.
Como não lembrar a graça com que trata das mulheres de Hitchcoch ou nos fala de Errol Flyin, com a sua "galantaria a toda a sela", segundo palavras suas, comentando: "Só ele e Bogart foram rigorosamente inimitáveis". Ou quando se refere aos fantasmas amorosos da sua imaginaçãoadolescente, Ingrid Bergman, Maureen O'Hara, Joan Fontaine ou Marlene Dietrich.
Com toda essa consciência estética e cultural, Bénard da Costa aborda também o tema da educação e do ensino e cito uma afirmação sua que deveria ser ponto de partida para uma reflexão sobre as várias reformas do ensino e do que, afinal, elas não têm sido: «As pedagogias que desvalorizam a função da memória, ou se batem contra o "ensino memorialista " são as responsáveis pela incultura
dominante e pela perda do sentido de tempo e de História , sem a qual ninguém se acha e os portugueses muito menos.»
E fico-me por aqui com este alerta muito sério que Bénard da Costa lança aos pedagogos modernos, muito responsáveis pela perda progressiva da cientificidade, quer no estudo da língua, quer no estudo da literatura ou de outras humanidades.
Que o oiçam, pois, com atenção, porque muito os portugueses poderão aprender com esta grande voz da cultura portuguesa.
discurso proferido na cerimónia de entrega do Prémio João Carreira Bom Crónica 2007