Qualquer dicionário deve conter – e o Houaiss contém – palavras como convencido, datado, precipitado, reduzido, não porque formas de verbo, mas porque autênticos adjectivos. Por razão semelhante, deve incluir advérbios de modo terminados em «mente». Derivados embora de adjectivos, são vocábulos independentes. E, o que é mais, a relação adjectivo-advérbio é não raro aleatória (qual dos sentidos de «prático» está em praticamente?), ou ambígua (pontualmente tem dois significados), ou problemática (o que haverá de «sensível» em sensivelmente?), ou mesmo diluída (redondamente não tem forma redonda). O Houaiss, que poderia, à sua escala, conter milhares de advérbios destes, incluiu apenas 47. Uma quantidade residual, e ainda assim lisonjeira, como já se verá.
Elaborámos, ao longo de um ano (os dicionários inversos não são, aqui, fiáveis), uma lista de advérbios muito utilizados. Para termos a certeza de estarem aí os mais frequentes, reunimos 450 – um excesso de zelo. Comparámos esse acervo com o dicionário da Porto Editora, de 1994, com o da Academia, de 2001, e com o Universal em CD-ROM da Texto Editora, de 2003. E que verificámos? Que este último, duas vezes e meia menor que o Houaiss, apresentava uma baixa coincidência, de 40%, com a nossa lista (sendo também verdade que os advérbios, no Universal, não ultrapassam as três centenas). O da Porto Editora, um simples e bom dicionário de uso, continha 65% do nosso inventário, além de largas centenas de outros advérbios mais. Por fim, o da Academia, que cabe três vezes no gigante luso-brasileiro, albergava nada menos que 90% da nossa lista, ultrapassando-a, depois, de longe (e importa sublinhar o tratamento das entradas, que chega a ser soberbo, não raro atingindo, no caso, as 25 linhas). Em suma: no terreno em apreço, se o Universal é um produto a melhorar, o Houaiss, em termos relativos e absolutos, desclassifica-se rotundamente. Pormenorizemos.
É provável que, na expressão culta distensa do nosso português, o top-10 dos advérbios seja: actualmente, especialmente, exactamente, geralmente, imediatamente, normalmente, principalmente, relativamente, praticamente e realmente. Pois bem, só os dois últimos figuram no Houaiss. Num possível top-20, ficaria ainda pelos seis.
Existe uma atenuante. Casos há – uns 40 – em que o verbete do adjectivo faz referência ao advérbio. Assim, em breve, em fácil, em próximo, faz-se alusão a um ausente «adv.». É, além de uma originalidade, um desajeitado remendo e um absurdo, já que frequentemente, ao explicar-se um termo, se remete para outros de que nem sombra existe no dicionário. Um detalhe picante: a letra «L» mostra uma concentração vertiginosa deste tipo de recurso, o que sugere, no redactor de serviço, um baque de consciência, uma sabotagem, evidentemente clandestina, das estouvadas directivas centrais.
E há uma agravante. Os 47 advérbios sobreviventes à hecatombe não denunciam o mínimo critério de selecção, como seria o de uma vaga frequência. São a mais pura desordem. Ora, maluquice por maluquice, porque não o delírio? Pois bem: entre esses poucos escolhidos, damos com delícias como dolcemente, da gíria musical, malmente, mesmamente, nenhumamente... Ah, e virgemente, descrito como «à maneira de virgem». Francamente!
in "Actual"/“Expresso”, de 6/11/2004