Caso o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, tivesse ouvido a voz de Padre Antônio Vieira, especialmente o Sermão de Santo Antônio aos Peixes, não teria cometido a insolência de pretender a tutela da língua portuguesa. Vieira é preciso: «O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão. Mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio?»
Apenas uma consideração sobre inominável bobagem. O idioma assimila o estrangeirismo porque é próprio do seu dinamismo amealhar conhecimento. Os galicismos em Eça de Queirós e Machado de Assis são exemplo perfeito da língua que se aperfeiçoa. Hoje, no nosso caso, o anglicismo prospera em decorrência da nossa ignorância em relação ao português.
É claro que o estrangeirismo expressa a cultura do colonizador, mas daí elaborar lei antiamericana é uma barbaridade. O brasileiro médio, que possui oito anos de estudo, domina pouco mais de 500 palavras em um idioma que supera 250 mil vocábulos. É quando o anglicismo passa a ser arroz com feijão, com conotações divertidas a exemplo do restaurante “Serv-Serv”, que conheci há mais de dez anos na região dos Calunga, no nordeste de Goiás.
Virou lugar-comum dizer que o brasileiro não tem memória histórica. Perfeitamente, o que lhe falta, na verdade, é conhecimento. No próximo ano, a Universidade de Aveiro e todo Portugal vão realizar importantes celebrações dos 400 anos de nascimento do Padre Vieira, que além de jesuíta era um extraordinário escritor e orador notável. O pensamento de Vieira merece mesmo grande acolhida, embora por aqui as manifestações devam ser tímidas.
Além do quarto centenário de Padre Vieira, 2008 deveria ser caro ao Brasil em decorrência do marco de 100 anos da morte do seu maior escritor, Machado de Assis. Por iniciativa do senador Marco Maciel, matéria por mim relatada, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei que instituiu 2008 “Ano Machado de Assis.” Como seria bom se conseguíssemos difundir a obra machadiana além da dor de Dom Casmurro. O pior é que já fomos melhores. Na minha infância, Machado era leitura obrigatória no ensino fundamental. Hoje só é lembrado nas resenhas preparadas para o “decoreba” do vestibular.
O ano que vem também possui significado cultural expressivo para o Brasil em razão de outro marco histórico: os 200 anos da chegada de Dom João VI ao País. Neste ano houve movimentação interessante no sentido de recuperar a memória verdadeira da gestão política do monarca português. Também por absoluta ignorância cuidamos de ridicularizar Dom João VI ao tratá-lo de apático, burro e pachorrento marido traído com uma coxa de frango à mão, quando seu legado esboçou a formação do Brasil, inclusive abriu as portas para a independência.
Ao contrário do tolo adiposo ao sabor dos ventos, Dom João VI destinou ao Brasil obra monumental que começa com a modificação dos costumes, como a introdução regular do garfo e faca à abertura comercial, e culmina com o início da industrialização, a instituição do ensino da medicina, a criação do Banco do Brasil, da Biblioteca Nacional, da imprensa e da formação da Marinha, entre outras iniciativas.
De burro Dom João VI não tinha nada, tanto que foi o primeiro a trazer ao Brasil cientistas e as artistas do mais alto gabarito para estudar e descrever aquela então terra desconhecida. Auguste Saint-Hilaire, Von Martius, Debret e Rugendas ajudaram a nos tirar da escravidão da ignorância. Saint-Hilaire, no início do século XIX, desfez, sem resultado, a compreensão de que o Brasil era um País rico, quando de fato era imenso sertão analfabeto e subpovoado.
Sobre a estupidez do povo, o botânico francês também divergiu e acreditou que a escola poderia nos salvar. Ainda não aconteceu e este é o país a se fazer no ano que vem, 200 anos depois.
O deputado Aldo Rebelo bem que poderia abandonar o comunismo e se mirar na música “Pela Internet” do ministro e compositor baiano Gilberto Gil, onde o estrangeirismo é integrado à letra em poética de muito respeito. Se não sair uma música, deputado, dá para fazer um cordel, quem sabe um hai kai, uma frase de efeito, um pensamento ou mesmo um gesto à moda de Pacheco, personagem do Eça de Queirós.
in Página 20, de 27 de Dezembro de 2007