Especificidades dos países de língua portuguesa revelam aspecto divertido do idioma lusitano
“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões/Gosto de ser e de estar/E quero me dedicar/A criar confusões de prosódias/E uma profusão de paródias/ Que encurtem dores/E furtem cores como camaleões/Gosto do Pessoa na pessoa/Da rosa no Rosa/E sei que a poesia está para a prosa/Assim como o amor está para a amizade/E quem há de negar que esta lhe é superior/E deixa os portugais morrerem à míngua/“Minha pátria é minha língua”
(Língua, Caetano Veloso)
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Parece piada de português, mas ali estão as legendas na entrevista que o nobre lusitano concede à jornalista Isabela Assumpção no Globo Repórter, programa exibido pela Rede Globo sobre Portugal, no último 7 de setembro. Está o homem a falar sobre os barcos construídos em Aveiro, no Norte, perto de Porto. Com o Atlântico à esquerda, o tema é a alga batizada de moliço e as embarcações feitas artesanalmente para capturá-las, os moliceiros.
Belmiro Torres Couto, presidente da Associação da Ria de Aveiro, tem a palavra nativa. “A retirada do moliço, o transporte de mercadorias, a extração de sal nas salinas, que ficavam distantes do continente, todas essas atividades foram definhando ao longo dos tempos e hoje não são mais rentáveis” é o texto traduzido, como em um filme americano exibido no mesmo instante no Telecine Premium. A fala original: “A saída do moliço, o transporte de mercadorias, a recolha do sal nas marinhas, que ficavam distantes do território, todas essas actividades foram declinando, desfinhando ao longo do tempo e hoje não são mais rentáveis”. É como uma pilhéria às avessas, sem Manoel, sem Joaquim. É mais uma viagem de brasileiros tentando descobrir, curtir, saborear as delícias gastronômicas e, no caso em tela, gramaticais daqueles 92 mil metros quadrados, espaço menor que o estado de Pernambuco, que conseguiram difundir a língua pelos cinco continentes e deixá-la acesa para hoje ser praticada diariamente por cerca de 230 milhões de pessoas no mundo.
Os textos dos jornais são uma boa fonte para identificar as pegadinhas do idioma. O esporte é andebol, só no Brasil o agá tem som de rê. O rúgbi, que é atração na Europa com o Mundial na França, é râguebi. As palavras estranhas se sucedem na leitura. “Jorge Andrade foi ontem operado com sucesso ao joelho esquerdo, após a rotura da rótula no jogo frente à Roma. O internacional português ficará alguns dias internado na clínica, antes de regressar a Turim, prevendo-se paragem mínima de cinco meses”, diz a nota do A Bola, tablóide diário de 48 páginas que dá inveja, sobre o jogador da Juventus.
Algumas das surpresas literárias que provocam um breve sorriso devem acabar em breve. Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe já assinaram um acordo para a unificação da ortografia. Os três países integram a Comissão de Países de Língua Portuguesa (CPLP), que reúne oito nações. Mas, se as três concordâncias já são suficientes, estão, porém, longe de uma unanimidade.
Argumentos como o de melhorar o intercâmbio cultural entre os países e a redução do custo econômico da produção e tradução de livros são suficientes. “Na ânsia de eliminar acentos mais que inúteis, como os de pêra e pólo, elimina-se também o de pára (verbo), mais que essencial”, afirma o professor Pasquale Cipro Neto, em recente artigo para o jornal Folha de S. Paulo, do qual é colunista. Pasquali também publica artigos no Correio da Bahia.
Portugal ainda não aderiu e por isso as alterações não se tornam realidade, as mudanças estão adiadas. Mas, quando o fizer, húmido passará a ser úmido, de Sagres a Viana do Castelo. E o Brasil dará adeus ao trema e será mais fácil escrever eqüino. Ganharemos, de lambuja, o k, o w e o y. E ninguém ficará mais na dúvida de onde colocar o circunflexo em vôo, dêem, desconsiderando a facilidade tecnológica proporcionada pelo Microsoft Office Word 2003, que já faz o serviço. Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e Timor-Leste completam o time de bravos resistentes do idioma.
Em Salvador, nas salas movimentadas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), a recepção à nova norma jurídica indicadora da ortografia moderna, que será gerada após modorrentas reuniões em gabinetes acarpetados, é fria como a água do Tejo nas noites de inverno. Sábios, os acadêmicos sabem que a história do idioma é algo que desperta mais paixões e ajuda a entender o futuro. O Programa para a História da Língua Portuguesa (Prohpor) desenvolve projetos como o do Dicionário Etimológico do Português Arcaico, ou ainda os Aspectos da Gramaticalização na História do Português. “Há um projeto nacional, do professor Ataliba de Castilho, que busca identificar no tempo, por meio de documentação, um recuo do que se sabe hoje sobre a formação da característica sintática do português brasileiro, que é do final do século XIX”, afirma a professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, coordenadora do programa.
Estão à disposição no instituto, incrustado no fragmento verde da mata atlântica do campus de Ondina, grandes quantidades de informações referentes à origem do idioma, que passa também pela formação do povo português. Leia e aprenda com A língua portuguesa em perspectiva histórica – Do português europeu para o português brasileiro: algumas questões, um dos textos disponíveis de autoria de Rosa Virgínia, doutora e referência nacional sobre o tema. “Os portugueses colonos vieram de vários lugares de Portugal”, diz ela, dando pistas para a continuação de um valioso e azeitado quebra-cabeças.
Do outro lado do Atlântico, a produção também é rica. Estuda-se a formação do idioma no país repleto de influências do Império Romano, das invasões bárbaras, de todo o contato com o Mar Mediterrâneo e com o norte da África. “Quando o português chega ao Brasil já leva uma longa experiência de se misturar, inclusivamente na cama, com outras raças e outras religiões e outras línguas”, afirma o lingüista e historiador da língua portuguesa Ivo Castro.
A indústria naval ganha corpo e a língua se espalha por onde o mar permite, sempre para o sul. A expansão tem o seu ponto alto e mais admirado no Brasil, aquela falsa ilha que se transformou em um país de proporções continentais e que contribui de forma decisiva para fazer do português um idioma de importância mundial, o quinto mais falado no mundo.
Pero Vaz de Caminha inaugura a linguagem escrita lá em Porto Seguro. Ainda genuinamente portugueses, outros textos são gerados pelos jesuítas que desembarcam em 1549, em Salvador.
Nas ruas, paulatinamente, entretanto, desenvolve-se uma confusão lingüística. Enquanto os colonos ainda conservavam o idioma da terra, os índios tentavam praticar o português, mas o manejo não era dos melhores. O tupi era ainda referência, utilizada até pelos bandeirantes em suas expedições. “As famílias dos portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender à escola”, escreveu o padre Antonio Vieira, em 1694, três anos antes de sua morte.
Alguns descendentes daqueles primeiros colonos hoje voltam para conhecer a antiga metrópole. E é de bom tom esquecer um pouco as piadas de português, ainda que seja difícil em determinados momentos. Conversa vai e vem, até que Alexandre Matos, designer em Coimbra, não se agüenta, encontra uma brecha. Em tom de pilhéria, brinca: “E vocês, que nem sabem falar o nome do próprio país?” Brasil, com o lê no céu da boca, é que se pede, ou melhor, que se exige em Portugal.
Mais no interior do país, na cidadezinha de Arganil, próximo a Coimbra, pertinho do nascedouro do idioma. O português é forte, rápido como os carros que atravessam a autopista.
A professora portuguesa, que conhece as artimanhas dos idiomas, não se impressiona tanto ao saber das tais entrevistas com legendas tradutórias exibidas em horário nobre pela televisão tupiniquim, aquelas de Isabela Assumpção. “Aqui, pois, em algumas ocasiões são legendadas entrevistas com gente dos Açores”, lembra Dulce Batista, que ensina inglês e alemão em uma escola local, citando reportagens feitas pelas emissoras da capital a partir do arquipélago de nove ilhas, destino turístico no mar.
Porém, fica boquiaberta ao receber um exemplar do jornal brasileiro. “Cotidiano com cê?”, questiona com fortíssimo sotaque. “Aqui pede-se o quo”. Promete que vai grudar no mural da escola, onde é chamada de setora, uma mistura de professora com doutora. “O português é mesmo uma língua matraêira”, confirma.
*in Correio da Bahia, de 4 de Novembro de 2007