Acordo ou desacordo? Parece que ninguém se entende bem nesta questão de ortografia da língua portuguesa, sobretudo os maiores interessados, que são os povos que a falam. Cada um acha que o outro foi o privilegiado na escolha da forma para a grafia, e todos temem se atrapalhar na hora da mudança.
O acordo ortográfico começou a tomar forma em 1986 e foi decidido por uma comissão formada de um brasileiro — Antônio Houaiss — e vários portugueses, além de observadores das repúblicas africanas de fala portuguesa. A pretensão inicial era apenas a louvável unificação das ortografias brasileira e portuguesa. Mas desde o princípio foi olhado meio enviezado e com má vontade e chegou a ser chamado Acordo Mortográfico, porque achavam que não emplacaria. Agora, entretanto, parece que vai emplacar e entrar como norma.
Porém, o projeto inicial ampliou-se e foram incluídas a abolição do hífen, do trema e do H interior.1 Só faltaram incluir a abolição da escravatura... Y, W e K voltarão triunfantes. À primeira vista parece simplificar a nossa vida, esta atualização do código escrito. Mas, na realidade, embutidas nestas regrinhas simples, estão as exceções que vão ser pedras no sapato do já mal alfabetizado povo brasileiro. Afinal, a palavra escrita é um retrato que temos na mente, e a ausência do hífen iria provocar grafias quilométricas que são avessas ao espírito da língua portuguesa, de certa forma, assemelhando-a ao alemão, esse, sim, com uma longa tradição aglutinativa.
A primeira ortografia da língua portuguesa pertence a uma época remota quando o Brasil ainda não existia como nação. Foi a fase fonética e reinou durante este período a anarquia ortográfica. A seguir, por influência dos escritores clássicos chegando aos românticos, tivemos um período do pseudo-etimológico, quando ressuscitaram letras mortas e sem valor fonético. Foi o tempo da “asthma” e da “physica”.
A partir de 1911, Gonçalves Viana, em Portugal, lançou bases da atual ortografia, adotada no Brasil com modificações, oficialmente em 1943. E é a que usamos hoje. Posteriormente, houve uma tentativa mal sucedida de reformulação e unificação em 1945, logo anulada. Chegou a ser ensinada nas escolas e adotada em livros didáticos. Mas foi revogada.
A partir de então, a língua portuguesa ficou com as duas ortografias oficiais, o que se tornou um problema mais político que lingüístico, pois a língua portuguesa ficou regida por duas leis ortográficas, o que acontece com nenhuma outra língua.
Continuando as mudanças unilaterais, em 1971, foram suprimidos os acentos diferenciais — ainda hoje usados (sêca — seca/ côco — coco), inadvertidamente, por muitos que foram alfabetizados antes desta data.
O atual projeto de reforma que partiu de uma acertada decisão de unificar as «grafias» (porque nem a língua, nem os usos, nem as pronúncias jamais serão regidos por lei) ao ampliar-se, encontra ainda forte reação, sobretudo dos intelectuais portugueses.
O acordo/desacordo será uma adaptação, um ajuste, havendo, inclusive, casos opcionais. É como funcionam as reformas ortográficas em espanhol, sabiamente conduzidas e autoritariamente impostas pela Real Academia Espanhola a todos os países «hispanohablantes».
A reforma é apenas uma pequena tentativa de atualização de grafia, ajustando-a aos usos comuns dos povos lusófonos. Vamos chegar a um acordo sobre o que for resolvido sobre nossa ortografia?
1 N. E. – Algumas precisões, assinaladas pelo nosso consultor D´Silvas Filho:
1. No acordo de 1990, unicamente está previsto suprimir o hífen nos seguintes casos: a) locuções como fim de semana; b) sempre com o prefixo co-, como em coocupante; c) nas palavras compostas em que a vogal de terminação do primeiro constituinte é diferente da vogal de início do segundo, como em autoestrada; d) quando na palavra composta o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com r ou s, como em cosseno; e) nas formas monofásicas do presente do indicativo do verbo haver: hei de, hás de, hão de. Em todas as outras formas o hífen permanece na norma comum; exemplos: tio-avô, verde-claro, Grã-Bretanha, erva-doce, mal-grado, bem-aventurado, além-mar, Lisboa-Porto, cor-de-rosa, pós-diluviano, anti-ibérico, ab-rogar, ex-director, vice-cônsul, pan-africano, inter-resistente (porque fundir alteraria a fonia), sobre-humano, sub-bibliotecário, etc. Em síntese, o hífen não será suprimido, sendo mais corre(c)to afirmar-se que pouco mudará neste capítulo.
2. O trema já tinha sido abolido em Portugal na norma de 1945. Só é autorizado em palavras derivadas de nomes próprios estrangeiros, siglas, unidades. O novo acordo suprime-o também para o Brasil nos grupos gu e qu quando o u é pronunciado (ex.: linguista, sequência, etc.).
3. Há muito tempo que o h interior foi suprimido nas duas normas (ex.: desoras, desumano, etc.).
*in Colunistas, sob o título "Acordo Ortográfico"