Mais ou menos perdido no meio da ampla cobertura do caso Renan Calheiros estava o mote para esta coluna. Reportagem do jornal Folha de S. Paulo de 20/06/2007, p. A5, incluía a seguinte passagem: «Os cheques, apresentados por Renan, são referentes à compra de 2.086 arroubas (sic) de boi, o que equivale a mais de 30 mil quilos de carne». O leitor terá percebido que arrobas foi grafada arroubas, não sei se pela redação de Maceió ou se pela revisão.
Os lingüistas, que não gostam da idéia corrente de erro, talvez admitam que casos desse tipo o sejam. Mas eles têm boas explicações. Trata-se do fenômeno da hipercorreção, efeito de excesso de cuidado, que leva a corrigir demais, a aplicar regras onde não se aplicam.
Funciona assim, no caso: muitos ditongos perdem a semivogal (outro > otro; ouro > oro; peixe > pexe etc.). Alertado do "deslize", um falante começa eventualmente a tomar bastante cuidado para "falar corretamente". E acaba cuidando demais. Recupera as semivogais em casos como os citados, mas também as acrescenta (esse é o erro) quando não deveria fazê-lo. Faz isso em contextos idênticos. Seu raciocínio é mais ou menos esse: se otro é outro, então arroba é arrouba. Vale para outros casos: se pexe é peixe, então bandeja é bandeija; se carça é calça, então sorvete é solvete etc.
Foi o que aconteceu no texto citado. Em arrobas, a segunda sílaba foi hipercorrigida: o correspondente de Maceió — ou o revisor de São Paulo — deve ter "pensado" que arroba é como otra. Então, deve-se escrever arrouba.
Os ditongos são traiçoeiros. Aliás, Mattoso Câmara registrou em texto clássico sobre erros de escrita duas grafias para traiçoeiro em uma prova de quinta série antiga: "traisueiro" (efeito do alçamento do o átono para u) e "trasçoeiro", (decorrente da queda da semivogal; aliás, de duas semivogais: o aluno deve ter pensado que "trais-", nesta palavra, é como traz ou atrás, que não têm i). O texto é Erros de escolares como tendências lingüísticas no português do Rio de Janeiro, publicado em Dispersos, agora com nova edição da Editora Lucerna, do Rio.
As hipercorreções decorrem de tentativas de acertar. Denunciam, portanto, lugares de variação e de possível mudança da língua. Assim, exigem do analista um cuidado pelo menos igual ao do falante que "erra": este sabe que nem todos os ditongos são lugares de variação. Por exemplo, quem diz "caxa" (caixa) não diz "bata" (baita) ou "ca-ca" (cai-cai); quem diz "otro" (outro) não diz "oto" (oito). No contexto em que uma das semivogais cai não necessariamente cai também a outra. A consoante seguinte deve ter um papel crucial para o fenômeno.
Não sei quais máquinas usa o jornalista que escreveu a matéria, mas certamente foi traído por um desses revisores ortográficos, que são insensíveis ao contexto. Como a forma arroubas existe, e o corretor apenas verifica um dicionário, não acusou nada. Arroubas é forma do verbo arroubar (o substantivo correspondente é arroubo, que significa êxtase, enlevo etc., que pode ter sido o estado a que Renan foi eventualmente levado por Mônica, e ela por ele, mas isso não tem nada a ver com o tema).
Alguém poderia, jocosamente, ou brincando de psicanalista, sugerir que a grafia adotada foi arroubas pela semelhança com a palavra roubas, de roubar, mas não acredito que seja uma boa explicação. Para um lingüista, certamente não é, porque suas teorias exigem sistematicidade, e o caso parece mera coincidência. Por outro lado, como se sabe, o inconsciente explora as coincidências, para, dizendo aparentemente uma coisa, dizer outra.
*artigo publicado em Terra Magazine de 28 de Junho de 2006