1. "Língua portuguesa desperta na Europa" - era o título de uma notícia de um jornal diário do dia 25 de Julho, a propósito de declarações do ministro da Educação. Dizia: Marçal Grilofalou das "ameaças e riscos" da Europa actual, entre os quais uma comunidade com uma única língua, e manifestou-se "muito preocupado coma sua língua materna".
Infelizmente, não é no estrangeiro que devem ser procuradas as maiores ameaças à destruição da nossa língua. De facto,enquanto o ministro da Educação se preocupa com os ataques do exterior,o ministro da Ciência e da Tecnologia não tem qualquer pejo em incentivar o uso da língua inglesa como forma de promover a internacionalização da ciência, sem se mostrar grandemente preocupado com a subalternização evidente a que é votada a língua portuguesa. Pelo menos, é esta a conclusão que me parece legítimo retirar das instruções que são dadas pelo Ministério para a elaboração de relatórios de investigação: "Para efeitos de avaliação de peritos internacionais é necessário apresentar três exemplares do relatório em inglês. É facultativa a apresentação de exemplares em português...". É um escândalo que os nossos arquivos de investigação não sejam obrigados a ter uma versão em português de partes fundamentais da nossa actividade de investigação! Infelizmente, o ministro (como muitos outros portugueses) parece estar mais preocupado com a nossa imagem no exterior do que com o que se passa cá dentro.
2. Será admissível que se tenha vindo a impor, quase como uma regra, que as teses de doutoramento apresentadas na Faculdade de Ciências do Porto sejam escritas em inglês, em alguns casos sem qualquer motivo minimamente plausível?Perante o cenário descrito anteriormente, não é de admirar que a maioria dos professores daquela faculdade comece a considerar como normal que as teses sejam escritas em inglês, sem se aperceberem (o quererem aperceber) do atentado que estão a cometer à nossa língua materna.
E é bem fácil o procedimento que um aluno de doutoramento deve utilizar para obter autorização para que a sua tese seja escrita em inglês: faz um requerimento ao presidente do Conselho Científico, anexa um parecer do seu supervisor justificando a necessidade de tão vil atropelo à língua portuguesa e aguarda pela decisão do Conselho Científico, um órgão de decisão formado pelos presidentes dos departamentos. Se o aluno apanhar uma nega do Conselho Científico, não deve desesperar! Ainda pode recorrer para o Plenário de Conselho Científico, formado pelos mais de cento e cinquenta professores universitários que integram a Faculdade de Ciências. E vale a pena! Ainda recentemente, após um pedido desses ter sido chumbado pelo Conselho Científico, o dito Plenário deu provimento ao recurso do aluno, sem sequer se ter preocupado com o puxão de orelhas que,implicitamente, estava a ser dado ao Conselho Científico. E, como é lógico, o precedente já faz lei: após esta desautorização pelo Plenário, são já vários os pedidos de escrita de tese em inglês, que,naturalmente, têm merecido a aprovação do Conselho Científico,consciente da vergonha por que voltaria a passar se a autorização não fosse concedida.
3. A ideia de escrever teses de doutoramento em inglês não é nova, e há situações em que tal procedimento se justifica plenamente: por exemplo, no caso de o aluno não ter nacionalidade portuguesa e não possuir conhecimentos suficientes da língua portuguesa. O problema, neste país de iluminados, é a criação de precedentes. De facto, no seguimento desta situação, perfeitamente compreensível, não tardou a surgir uma outra, mais rebuscada, em que se passou a defender a aceitação de teses em inglês se o supervisor ou um dos membros do júri não fosse português. É um perfeito disparate, até porque nada obriga a que os restantes membros do júri (naturalmente,portugueses) tenham que saber inglês. Se, pela minha parte, algum dia vier a ser chamado para um júri de doutoramento em que a tese esteja escrita em inglês, sem uma forte razão para tal, não terei quaisquer dúvidas em recusar-me a participar. E não é por desconhecimento da língua inglesa.
Qualquer carreira universitária em condições obriga,pelo menos na área das Ciências, à publicação frequente de artigos em revistas internacionais e à apresentação de comunicações orais em congressos, em que a língua inglesa é quase exclusiva. O domínio do inglês é, pois, muito importante. Mas uma coisa é publicar no estrangeiro e outra coisa é publicar em Portugal! Como é que se pode explicar aos portugueses que um aluno, cujo doutoramento custa perto de 10 mil contos ao Estado português, vá, depois, redigir a tese numa língua que não é a nossa língua oficial!? Não sou um entendido na Constituição, mas até valeria a pena verificar se tal atitude não poderá estar ferida de inconstitucionalidade.
Não seria muito mais simples, no caso de um dos membros do júri ser estrangeiro, que o candidato lhe entregasse um resumo de algumas dezenas de páginas sobre o seu trabalho, que, mais tarde, até poderia servir de base para a escrita de artigos em revistas internacionais!? Foi exactamente o que eu fiz quando, em 1986, defendia minha tese de doutoramento. Considero que é uma boa solução de compromisso entre a necessidade cada vez maior de internacionalização no mundo em que vivemos e a defesa intransigente da língua portuguesa.
Mas a argumentação mais insólita, para não lhe chamar outro nome, é a que defende que a tese deve ser escrita em inglês dado o "interesse em a difundir com a maior brevidade junto de outros investigadores estrangeiros com os quais existe colaboração". É espantoso como tal argumentação pôde ser aceite pelo Plenário da Faculdade de Ciências do Porto, sem que se compreendesse que, a prazo, se poderia estar a passar uma certidão de óbito à língua portuguesa! Infelizmente, é uma situação de atropelo que extravasa a Faculdade, traduzindo, em minha opinião, a arrogância de muitos daqueles que se consideram como uma elite deste país e que querem mostrar no estrangeiro (em nome da dignidade de Portugal) que estão muito acima da mediocridade cultural portuguesa, paulatinamente atirada para a cauda da Europa.
Cf. o texto em contraponto desta controvérsia, A Ciência e a Língua Portuguesa.
Artigo publicado no jornal «Público» do dia 12 de Agosto de 1999.