Língua portuguesa e Timor Leste - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Língua portuguesa e Timor Leste

Uma saudável epidemia tomou conta da imprensa brasileira. Os jornais publicam seções de valorização da língua portuguesa; mas, antes de aprofundar o assunto, preocupo-me com o que se passa em Timor Leste, sem nenhum toque de demagogia inconcebível. Já foram assassinadas mais de 200 mil pessoas pelas milícias indonésias, pagando pelo crime de ter uma outra religião (91% de católicos) e de falar outra língua (o português). 

Onde é que estamos, perto da virada do século, para se admitir tamanha barbaridade, só agora enfrentada pela ação da ONU, que mais uma vez custou a acordar da sua habitual letargia? O Brasil tem grande responsabilidade em relação a Timor Leste, não só pelo seu interesse estratégico na Ásia, mas principalmente em virtude de ser o maior guardião dos tesouros culturais representados pela língua portuguesa. Já não chega a drástica redução dos falantes, como os de Goa, Macau e Moçambique, por exemplo? Agora o mundo assiste, estarrecido, ao genocídio dos tempos modernos. Seres humanos são mortos, outros fogem para as montanhas, a capital (Díli) torna-se uma cidade-fantasma. Como se pode admitir tamanha barbárie?

Numa audiência recente com o presidente Fernando Henrique Cardoso, ao receber a diretoria da Academia Brasileira de Letras, o tema da ameaça à língua portuguesa aflorou com naturalidade, quando era comentada a elaboração do "Dicionário da ABL", que está sendo tocada pelos especialistas Antônio José Chediak e Evanildo Bechara, todos professores do Colégio Pedro 2º, mais Diógenes de Almeida Campos (representante da Academia Brasileira de Ciências). 

Arriscamo-nos a uma interpretação, sempre passível de discussão. Em primeiro lugar, pode-se registrar o fato, facilmente comprovável, de que nunca se escreveu e falou tão mal o idioma de Rui Barbosa. Culpa, quem sabe, da deterioração do nosso sistema de educação básica. Em segundo, o pouco apreço que devotamos ao gosto pela leitura. Nosso índice "per capita" mal alcança dois livros por habitante; na França, por exemplo, oscila em torno de oito. Não se pode estranhar a afluência de interessados a espaços culturais como o centro George Pompidou, em Paris, por onde transitam diariamente cerca de 25 mil pessoas. Tudo feito de modo científico, para fazer com que os usuários se interessem, desde cedo, pelos mistérios da leitura. O "atelier des enfants" é simplesmente genial; dá gosto ver as crianças às voltas com os materiais impressos, ricamente ilustrados, competindo com os vídeos em nítida vantagem. Em terceiro lugar, para não ir muito longe, podemos citar a "contribuição" dos meios televisivos. Donos de uma força descomunal, salvo as exceções de praxe, como os programas gerados pela TV Cultura de São Paulo, praticam um magistral desserviço à educação brasileira. Comunicadores falam mal, atores não se expressam adequadamente, dublagens são feitas de forma chula, programas infantis deseducam. O que se pode esperar desse triste universo?

Novas formas de regência verbal são adotadas e, também por influência do economês, todos "oportunizam", "absolutizam", "otimizam", "a nível" disto e daquilo, e "colocam" perguntas e dúvidas, "enquanto" alunos... 

Para que estudar verbos irregulares, se é mais fácil dizer "interviu" ou "manteu" ou, ainda, descobrir outras utilidades para o "aliás" e o "inclusive"? E o triste "houveram"?

Os chamados anglicismos estão, entre nós, nacionalizados e incorporados ao dicionário por transformação semântica ou morfológica: bife, clube, bonde, dólar, iate, teste não agridem mais a língua nacional.

Também não se ignoram a experiência tecnológica e científica e as relações comerciais, políticas e diplomáticas, que não prescindem de expressões como blue chip, spread, prime rate, bit, software e muitas outras. Constituem um jargão especializado que não interessa à população em geral, mais preocupada com o salário e os preços do arroz e do feijão...

A conclusão é que se deve cuidar dessa matéria de forma inteligente, sem patriotadas, mas com objetividade, no sentido de valorizar o idioma de Machado de Assis e de Fernando Pessoa. Se a nossa pátria é a língua portuguesa, por que não cuidar bem dela?

Fonte

Texto publicado recentemente no jornal brasileiro «Folha de S. Paulo»

Sobre o autor

Arnaldo Niskier (Rio de Janeiro, 1935) doutor em educação, membro da Academia Brasileira de Letras e presidente do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE-RJ). É autor do livro Memórias de um Sobrevivente (Nova Fronteira, Rio de Janeiro).