A que propósito vem isso no contexto do Ciberdúvidas? Quem tenha consultado os cronistas portugueses da Índia, tais como João de Barros, deverá ter reparado que as suas Décadas da Ásia estão constantemente a utilizar expressões, que somente os especialistas do Oriente poderão hoje em dia compreender. Eis uma passagem: «Acudiu muita gente dos Canarins da terra, que folgavam ganhar jornal por lhes ser mui bem pago, o que causou em pouco tempo ser acabada, e os Gancares se virem a Afonso de Albuquerque, dizendo que ele era Senhor de Goa.... Afonso de Albuquerque por estes Gancares serem as cabeceiras das aldeias... os agasalhou bem, agradecendo-lhes aquela obediência.»
Será que só o malabarismo político ficou do nosso património dos Descobrimentos? Existem centenas de vocábulos que enriqueceram a língua portuguesa falada e escrita, como consequência dos contactos com o Oriente. Achei que algo desse património histórico-linguístico poderia ser recuperado através duma série de curtas narrativas histórico-biográficas. Se o meu vocabulário e o meu estilo têm muito de anacrónico, isso faz também parte da «diversidade» da lusofonia.
Sou de naturalidade goesa canarim (o meu B.I. diz que sou do antigo estado da Índia), um dos muitos descendentes de Shantappa Kamat, do quinto vangôd, ou clã dos gãocares (proprietários) da aldeia (gão) de Moirá. Este senhor fora convertido pelos Franciscanos nos inícios do século XVII. Baptizaram-no com o nome Diogo de Souza. Era órfão, e foi criado pelos Franciscanos no seu colégio principal em Goa. Era o colégio dos Reis Magos, situado na margem do rio Mandovi, margem oposta à cidade capital Panjim.
Diogo de Souza ajudou os Franciscanos como catequista na sua aldeia e colaborou com os missionários para a conversão da aldeia inteira. O arquivo histórico de Goa guarda a correspondência que Diogo de Souza manteve com D. Felipe I de Portugal. Diogo de Souza escrevia em língua Marata e em alfabeto canarês (conhecido pelos paleógrafos por Halekanad) O língua (tradutor) do Estado fez-lhe uma versão portuguesa. Diogo de Souza conta resumidamente ao monarca a sua história pessoal: Explica as dificuldades económicas e as suas responsabilidades de recém-casado, e acaba por pedir ao monarca que remunere os seus serviços à religião. Sugere que se lhe dê em aforamento perpétuo umas terras que pertenciam ao templo hindu já destruído da aldeia de Moirá. Existe um alvará real que lhe concede a mercê, e os descendentes de Diogo de Souza, meus parentes colaterais (daiji em Concani), continuam ainda na posse desses terrenos. Quando há uns anos cavaram uns terrenos para alicerce duma nova construção, descobriram umas lajes de granito. Voltaram a cobrir rapidamente a escavação, e não se deu conta do achado a ninguém para evitar que os hindus da aldeia viessem para aí reconstruir o antigo templo.
A Goa para os goeses é um mundo. E nos tempos dos portugueses era um universo. Com as grandes dificuldades de transportes (entre as outras que foram agora substituídas por outras!) era um acontecimento importante chegar até Panjim, a capital do antigo estado da Índia. Aliás, não distava mais de 20 quilómetros da minha freguesia.
Para mim, até a idade de 10 anos, o meu mundo era a minha aldeia de Moirá, situada a poucos quilómetros da vila de Mapuçá, a capital do concelho nortenho de Bardez. Quem não tivesse forças para andar até Mapuçá (uma distância de quatro quilómetros), tinha que aproveitar da única viatura pública que passava pela aldeia uma vez por dia. Era um pesado de marca Ford, com uma chapa de metal amarelo por fora, e no interior as filas de bancos davam-lhe o ar duma capelinha móvel. Era vulgarmente conhecido por camião. A estrada pública tinha também um tratamento esquisito: parecia mais um caminho de ferro, com duas barras paralelas de asfalto. Poupava-se assim no orçamento das Obras Públicas, já que era única a viatura, e não tinha que ultrapassar a ninguém.
A aldeia de Moirá é muito conhecida em Goa. Em parte, porque os seus habitantes, os Moidecares, têm a fama dos alentejanos de Portugal. Contam-se muitas anedotas dos Moidecares, incluindo uma que diz que eles recorreram ao adubo para fazer crescer a igreja da paróquia. Há uma outra que regista a sua esperteza em resolver uma situação de emergência: afundava-se uma canoa. Os tripulantes Moidecares furaram o fundo para ajudar a água a escoar. Naturalmente, afundaram-se mais cedo. A celebridade dos habitantes de Moirá vem também duma especialidade da aldeia. Produz uma qualidade de bananas, que se comem melhor fritas, e têm muita procura em Goa. Há documentação histórica em que se descrevem essas bananas como figos de Crananore. Os Franciscanos que missionavam no concelho de Bardez foram buscá-las nas suas missões naquela região do Malabar, no sul da Índia. De vez em quando, os Franciscanos enviavam saguates (prendas) ao vice-rei, e umas vezes os figos de Crananore faziam parte dos seus saguates.
As plantações de bananas requeriam muito cuidado, mas os Moidecares souberam fazer delas a base duma economia bem lucrativa. Quando eu era pequenino, fascinavam-me as filas dos Moidecares, geralmente mulheres, com cargas desse produto agrícola, e de vários outros, nas cabeças e nas ancas, a marcharem nas manhãs das sextas feiras para a feira semanal de Mapuçá. A meio caminho, a dois quilómetros de Mapuçá encontravam um pedestal de altura duma pessoa adulta. Era para as pessoas se aliviarem da carga e a poderem retomar sem ajuda de ninguém. Era uma solução tradicional indiana. O pedestal («dovornem», derivado do verbo Concani «dovrunk» ou colocar) nos trajectos mais longos, era também um marco indicador de dois quilómetros de distância.
Posso agora tentar adivinhar uma explicação para as histórias inventadas acerca dos «Moidecares», designando-os vulgarmente por «Moidecar pixé»! Como conheço bem o génio dos habitantes, e herdei-o para bem ou para mal, posso afirmar sem dúvida alguma que se trata dum povo orgulhoso, muito trabalhador, e capaz de combinar o orgulho com uma simplicidade pouco vulgar. Moirá produziu personalidades com grande nível de formação e que ocuparam cargos públicos de respeito. Muitos deles, antes de vestirem o seu fato e gravata para ocuparem os seus gabinetes e postos de trabalho, não se importavam em visitar os seus campos e hortas. Apareciam vestidos de langotim e com bilhas de urina que se recolhia durante semanas para estrumar as plantações. Era esta capacidade de combinar a vida pública e de campo que lhes mereceu o epíteto de «pixé» ou loucos!
Para concluir esta curta apresentação da minha aldeia de origens, não posso deixar de mencionar um capítulo duma crónica franciscana do século XVII. O cronista Frei Paulo de Trindade, narra no capítulo 58 da Parte I da sua Conquista Espiritual do Oriente a história da conversão da aldeia de Moirá. Cita a passagem bíblica em que a conversão dum pecador é considerada digna de maior festejo nos céus do que a de noventa e nove justos. Conta-nos a seguir como no ano de 1619 a aldeia inteira se converteu de vez, apesar de seus habitantes serem «brâmanes gentios dos mais supersticiosos da ilha». Analisei este fenómeno com muitos pormenores há uns anos (1986) num estudo que se publicou na ocasião da celebração dos 350 anos da fundação da paróquia. Os Moidecares previram a confusão que resultaria para a administração local e para a vida social da comunidade aldeana se as conversões fossem individuais e espaçadas. E anteciparam muito bem, mas na altura deixaram a todos perplexos. Parecia mais uma prova da sua tradicional loucura colectiva. Só que as outras aldeias não tiveram a mesma perspicácia, e compreenderam a sabedoria dos Moidecares algo tarde.
P.S.– Tentamos indicar os significados dos termos de origem indiana no próprio texto, mas quem tiver interesse em obter mais informação linguística poderá encontrá-la no Glossário Luso-Asiático, 2 volumes (Coimbra, 1919-21) da autoria de Mons. Sebastião Rodolfo Dalgado.