Qualidades e defeitos da linguagem - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Qualidades e defeitos da linguagem

A linguagem tem qualidades que devemos cultivar e defeitos que é forçoso evitar. Entre as qualidades avultam a pureza, correcção, clareza, eufonia, precisão, propriedade, harmonia, conveniência, dignidade e ordem.

Por pureza entende-se a conformidade da linguagem com a índole da língua. Nesse sentido, necessário se torna que usemos apenas palavras da própria língua e autorizadas pelo uso dos que bem a falam, e procuremos que as frases e orações sejam construídas de harmonia com as regras da boa sintaxe. A pureza da linguagem é uma qualidade primordial e indispensável para conservarmos intacto o maior legado que recebemos de nossos antepassados.

A correcção consiste na observância das regras estatuídas pelo uso autorizado, no que diz respeito à grafia, ao vocabulário e à sintaxe. A pureza da linguagem é uma qualidade primordial e indispensável para conservarmos intacto o maior legado que recebemos dos nossos antepassados.

A correcção consiste na observância das regras estatuídas pelo uso autorizado, no que diz respeito à grafia, ao vocabulário e à sintaxe. Ficam, portanto, condenados o barbarismo (emprego de palavras alheias à língua), o solecismo (inobservância das regras de sintaxe), o plebeísmo (emprego de termos de calão ou plebeus) e os exotismos inexpressivos ou inúteis. Devemos, porém, notar que os provincianismos vocabulares são admitidos na região onde correm, quando não sejam deturpações grosseiras da língua normal. Os arcaísmos (modo de falar ou escrever antiquado) podem também ser empregados, quando se quer imitar a linguagem da época em que tiveram uso, ou quando se faz referência a objectos hoje desaparecidos. O neologismo (emprego de palavras novas) é ainda admissível, desde que represente uma aquisição apreciável para o património vocabular, se dentro da língua não houver palavra que possa expressar, com precisão, a mesma ideia. A história da língua demonstra que são inevitáveis infiltrações estrangeiras no idioma, mas esse facto não autoriza que se faça uma adaptação quase letra a letra, sob pretexto de necessária, de uma palavra de nacionalidade francesa, derivação francesa e fisionomia francesa, como acontece com "feerique" que aqueles que não têm o menor senso da nossa língua querem transformar no português feérico. E o que acontece com este termo, de origem francesa, acontece com muitos outros de diferentes proveniências. Vem a propósito citar aqui as palavras de Rui Barbosa: «Venham as novidades, mas recebendo feição vernácula. Venham os estrangeirismos assim transformados, contanto que sejam necessários».

À correcção gramatical deve juntar-se a correcção musical que aconselha a eufonia, ou agradável combinação de sons, e condena a cacofonia, defeito resultante de se formar um vocábulo de significação desagradável ou baixa pela junção do final de uma palavra com o princípio da palavra seguinte. Seja dito de passagem que os maiores homens de letras cometeram tais deslizes. Assim, Vieira disse: «o oceano que por sua imensa grandeza se chama mar».

A precisão exige que as palavras mantenham uma justa proporção com as ideias, de forma que se eliminem superfluidades e redundâncias. Ofendem, portanto, a precisão os acessórios supérfluos, a repetição escusada de sinónimos, os circunlóquios (1) desnecessários, os períodos demasiadamente extensos, bem como o exagerado laconismo, que deixa o sentido escuro ou incompleto.

A propriedade é a escolha de termos que traduzam, adequada e unicamente, o respectivo conceito. Os chamados lugares comuns, os termos vagos, as expressões de mais um sentido e a ambiguidade são locuções impróprias. A propriedade da linguagem mereceu sempre particular interesse aos mestres mais apurados da língua. Vieira é, sob este aspecto (como sob muitos outros), um grande exemplo a seguir.

A clareza requer manifestação fácil de pensamento através de uma expressão luminosa e transparente. Assim, tem de se evitar tudo quanto possa causar obscuridade de ideias ou de expressão: barbarismos, solecismos, provincianismos, neologismos, arcaísmos, termos técnicos desconhecidos, transposições, parêntesis extensos, expressões refinadas, concisão demasiada, ostentação supérflua de vocábulos, deslocação de termos, etc. O equívoco, ou incerteza sobre a função lógica de um vocábulo, ofende a clareza. Bernardes escreveu, um pouco obscuramente «Assim maldizia Job a sua mulher». Evite-se também a anfibologia ou expressão de duplo sentido, como esta: «Então o proprietário desferiu contra um dos inquilinos um golpe que causou, felizmente, uma ferida sem gravidade». O correcto seria: «que causou uma ferida felizmente sem gravidade».

A harmonia é o encanto musical produzido pela escolha e colocação das palavras. Não se devem, pois, empregar vocábulos ásperos e duros, assim como se deve evitar a repetição dos mesmos sons e tudo quanto, na disposição das palavras e no arranjo do período, prejudique o andamento rítmico e melódico.

A forma literária terá unidade, se as partes componentes estiverem sujeitas ao mesmo tom geral e uniforme de estilo e linguagem. Assim como todos os pensamentos devem estar ligados logicamente para formarem um todo moral, da mesma forma os elementos externos (palavras, frases, figuras e tropos) devem ligar-se num todo artístico. Uma carta, um conto, um folhetim, um poema, um discurso nunca serão um modelo do género, se, desde o princípio ao fim, não estiverem unidos por uma concatenação lógica de ideias, e se, na mesma composição, entrarem estilos diferentes.

Por conveniência, entende-se a adaptação perfeita do estilo ao assunto, às circunstâncias de tempo ou de lugar e às pessoas. É necessário que se mantenha o equilíbrio entre o fundo e a forma, entre o termo e a ideia. Peca contra a conveniência que usa a linguagem familiar com superiores, jocosa em assuntos graves, folgazã em circunstâncias tristes, vulgar para ideias nobres, solene e pomposa para futilidades.

Às qualidades apontadas devemos juntar ainda a dignidade, que consiste no respeito devido às leis que regem o decoro da palavra. Dignidade não é moralidade; esta atinge as ideias e os sentimentos, ao passo que aquela alcança apenas a expressão verbal. Pode ter dignidade de estilo uma obra profundamente imoral. No entanto, devemos reconhecer que a natureza do assunto comporta, por vezes, certa rudeza e realismo. Se devemos evitar o plebeismo e a vulgaridade, devemos também precaver-nos contra o preciosismo ou delicadeza exagerada.

A ordem é também uma qualidade literária fundamental. A ordem provém de uma concatenação lógica das ideias, e, nesse caso, as palavras dispor-se-ão naturalmente, de forma que dêem a conhecer a clareza dessas mesmas ideias.

Para terminarmos estas breves considerações, resta-nos dizer que todas as qualidades da linguagem, a que aqui se faz referência, devem ser cultivadas e respeitadas de maneira que o estilo não perca a vivacidade e o colorido precisos para interessar e atrair o leitor. E é nisso que reside a virtude dos grandes mestres.

 

Fonte

4º capítulo do livro "Linguagem e Estilo", edição Livraria Tavares Martins, Porto, 1942, da Colecção para o Povo e para as Escolas.

Sobre o autor

Eduardo Pinheiro, professor, autor do livro Linguagem e Estilo (1942) e de vários manuais escolares.