O génio da língua é a essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis, que se pode sintetizar numa expressão mais ou menos definida.
Na língua portuguesa há um certo número de palavras altamente expressivas do que a nossa sensibilidade possui de mais íntimo e característico, e, por isso, sem equivalentes nas outras línguas.
Mas conhecemos ainda uma célebre palavra animada pelos dois princípios religiosos que definem a alma pátria.
Não precisamos de reunir vários sentimentos comuns dos portugueses, para com eles desenharmos o seu carácter mortal. Há um que o define por completo. Refiro-me à Saudade.
Analisai-a e vereis logo os elementos que a formam: desejo e lembrança, conforme Duarte Nunes de Leão; gosto e amargura, segundo Garrett.
O desejo é a parte sensual e alegre da Saudade, e a lembrança representa a sua face espiritual e dolorida, porque a lembrança inclui a ausência de uma coisa ou de um ser amado que adquire presença espiritual em nós.
A dor espiritualiza o desejo, e o desejo, por sua vez, materializa a dor. Lembrança e desejo confundem-se, penetram-se mutuamente, e precipitam-se depois num sentimento novo que é a Saudade.
Pelo desejo e pela dor, a Saudade representa o sangue e a terra de que descende a nossa Raça.
Assim, aqueles dois ramos étnicos que deram origem aos povos latinos encontraram na Saudade e, portanto, na alma portuguesa, a sua divina síntese espiritual.
A saudade pelo desejo (desejar é querer, e querer é esperar), em virtude da própria natureza do desejo, é também esperança, assim como é lembrança pela dor.
Mas, para além deste aspecto definido e revelado da Saudade, existe ainda a sua feição misteriosa, vaga e indefinida, que devemos perscrutar em outros vocábulos intraduzíveis, como remoto, ermo, oculto, luar, nevoeiro, medo, sombra, etc.1
1 Cf. O Génio Português, pp. 27-33.
In Arte de Ser Português, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 89-91, título da responsabildade do Ciberdúvidas.