A escola de Catete não tinha mestre. A professora, que diziam ser de Lisboa, teria alegadamente fugido para Luanda para não mais voltar à vilinha do interior em que a administração colonial a depusera. Teria ficado, de início, assustada e, depois, farta da vida pelas terras do vasto mato angolano.
Tudo aqui seria diferente daquilo onde crescera e se habituara, e que fora forçada a deixar. Mais primitivo, rude e perigoso do que os apregoados faustos da capital do império, que bastante poucos conheciam ao certo, e que, por isso, se imaginava pomposa, rica e sobretudo civilizada. Assim se pensava, ou melhor, falavam os mais velhos.
Nós, os alunos, explicávamos a repentina saída de outra maneira. Firmemente, acreditávamos que a bruxa tinha desandado, porque nós, as suas vítimas, nos havíamos vingado das ponteiradas, reguadas e vexames que, cruel, nos aplicava. Espavorida de susto largara Catete.
Era uma fatídica manhã de chuva, o seu papagaio, Jacó, com certeza incomodado como nós, não aguentara mais o cativeiro e voara pela janela do quarto fora. Tudo isto se passara muito cedo, antes de a aula principiar. Deste modo, após a contagem das faltas e o canto de «A Portuguesa», a senhora nos deu ordem de, sem demora, procurarmos o bicho e não regressarmos sem ele. Rapidamente o desencantámos no topo de um alto e tortuoso tamarindeiro, de donde, por mais imprecações e pedradas, não despegava. Contudo, apesar da advertência da mestra, ninguém se atreveu a trepar pela árvore, porque mal assombrada e, principalmente, por causa das cobrinhas pretas que de um nicho oco no cimo do tronco a infestavam. Portanto, de mãos vazias, retornámos à escola e aí fomos recebidos pelos ralhos e insultos da mulher furibunda que nos mandou para casa.
Ainda que contentes, pelo tempo inesperado de brincadeira, o procedimento da professora provocara em nós um difuso e persistente sentimento de humilhação. Quando, por acaso, descobrimos um surucucu enroscado por trás de umas pedras, logo o matámos, como se isso equivalesse a uma desforra pelo desaforo sofrido. Foi então que alguém se lembrou de o botar, sorrateiramente, na banheira da residência, enquanto a moradora deambulava pela vila. A julgar pelos gritos aflitos, que ouvimos no esconderijo do qual presenciámos a cena, o efeito da cobra venenosa fora o melhor.
Enfim, esta constituía, para nós, a verdadeira razão do afastamento para Luanda da tal pessoa que tanto nos martirizara.
Esse foi, igualmente, o motivo que levara o Senhor Feijó a vir a nossa casa, a fim de me dar lições de Português, Aritmética e Caligrafia. Ele era um velho angolense, preto retinto. Vestia, invariavelmente, fato branco de brim, consistindo em jaqueta, colete e calça bem vincada. Do fundo alvo da roupa sobressaía, brilhante e dourada, a corrente do relógio de bolso. Ao domingo, para ir à missa, punha solenemente chapéu de palha, o panamá, como especificava.
Uma tia afirmava que, no passado, ele havia sido dono de lojas e de terras, entretanto, lhe tinham retirado o alvará e ele se vira obrigado a ensinar os filhos mestiços dos comerciantes brancos.
Desta feita, ganhei eu um novo mestre que me marcaria para todo o sempre. Por exemplo, a minha escrita tem arrebiques de caligrafia que dele herdei. Porém, ao escutar, em Portugal, a rádio, as gentes e ao assistir a programas de televisão, constatei que, discreta, uma outra influência quedara. Nomeadamente, a aversão a vogais indefinidas e sussurradas que se não enunciam com clareza, a fins de palavra que se engolem e a vocábulos estranhos e desnecessários ao vernáculo, mas que nele se infiltram.
Em falar lento, cadenciado e cerimonioso, o professor ia mostrando o modo correcto e, inexorável, vertia para o português qualquer quimbundismo que se me escapasse. Expressar-me direito não representava tarefa simples para mim, pois na rua, com as demais crianças e até em casa, com irmãos e primos, nós empregávamos um português e um quimbundo pobres que, espontaneamente, misturávamos. Não era, de facto, incumbência fácil a que assumira o Senhor Feijó e que ele cumpria com um afinco paciente e inalterável. Tão bem desempenhou ele o seu papel que, tempos mais tarde, já no Liceu Salvador Correia, em Luanda, aguentei sem pestanejar as tiradas da «Rica». Esta professora, metropolitana, era desse jeito designada pela opulência de formas e de curvas. Porventura, só dita abundância nos induzia a lhe perdoar o aborrecimento que produzia em querer, teimosamente, extirpar de nós tudo o que lhe cheirasse a nativo. Qualquer inofensivo «eu me lavo», «eu lhe vi» ou «pópilas», se convertia em «eu lavo-me», «eu vi-o» ou «credo», ou seja em formas que nunca dantes nos saíam pela boca. Assim, aprendi duas modalidades da chamada língua de Camões, a que eu hoje, segundo circunstâncias, recorro. Combinando, aliás, as duas na maior parte das ocasiões.
Uma versão, a do Senhor Feijó, remonta à segunda metade do século XVII, nas regiões de colonização antiga, como elemento integrante da acção dos Jesuítas. Traduziram para o quimbundo textos sagrados da sua Igreja e abriram escolas no sertão, onde se empenhavam em transmitir aos africanos o conhecimento de latim e de português. Esta prática instaurou um bilinguismo útil, abrangendo uma faixa importante da população, e enraizou o falar europeu, que guardou, até cerca de meados deste século, modismos de sabor arcaico. Angolanos, portugueses e outros, ignorantes da história, supõem serem eles, unicamente, brasileirismos. Como se, mesmo bem depois de 1822, ano da independência brasileira, o comércio de escravos e a sua gestão não houvessem compelido a um constante vaivém de homens de uma margem à outra do Atlântico Sul. Como resultado, a cultura brasileira e a sua expressão de si estão impregnadas de Angola. Este relacionamento excedia, na época, o que se desenvolveu entre Luanda, ou Benguela, e Lisboa.
Embora poucos desses arcaísmos restem, eles criaram no nosso país uma predisposição remota que a juventude da população, a lógica subjacente das línguas africanas, a semelhança de condições naturais e as telenovelas sustentam.
Quanto à modalidade da «Rica», infelizmente, ela foi-nos imposta com violência, durante o período da ditadura salazarenga, em detrimento dos idiomas africanos e de todo o particularismo local. Ela exprime poder, com frequência arbitrário, e, como tal, parcialmente permaneceu.
Estas considerações provêm, retomando o fio à meada, do português que, demasiadas vezes, oiço ou leio em Lisboa.
Enquanto angolano, moldado pela atenção à palavra falada, que a tradição oral cunhou entre nós, e pelo gosto e respeito à língua manejada a preceito, não consigo travar em mim uma sensação de escândalo ao verificar o que me rodeia.
Irrita o redemoinho de «pás» e de «percebes», quando ainda não há nada a entender, que salpica a fala de uma cacofonia inconveniente. Perturba a música de palavras consonantizadas, com falsas ressonâncias eslavas, e cujas terminações, esbatendo-se, apenas se adivinham. E todo este discurso, não raro quase incompreensível ao meu ouvido, se eriça aqui e acolá de termos anglo-americanos abstrusos.
Nessas alturas, sinto saudade do Senhor Feijó e... da «Rica», cada um, à sua maneira, protegia um português, surgindo tão desmunido, que também me pertence.