Texto escrito pelo autor para sua página pessoal, na Internet.
[A] questão do Vocabulário Comum da Língua Portuguesa para apoio do Acordo de 1990 não tem sido pacífica.
No introito, o Acordo regista:
«Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto possível e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.»
O texto não está perfeito. O Vocabulário Comum (VC), necessário um ano antes da data prevista para entrar em vigor o Acordo (1994), refere-se só às terminologias científicas e técnicas?
Se a ideia era mesmo restringir as condições do VC às terminologias científicas e técnicas, uma redação mais correta seria:
a) ..... um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa para as terminologias científicas e técnicas, tão completo e tão normalizador quanto possível.
De facto, basta no texto original fazermos uma pausa entre a estrutura <tão completo quanto possível» e a «e tão normalizador quanto possível» para a ideia ficar bem diferente:
..... de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto possível .... e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.
Ou, numa redação sem ambiguidades, tínhamos a nova ideia:
..... um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa tão completo quanto possível e, no que se refere às terminologias científicas e técnicas, tão normalizador quanto possível.
Uma das qualidades da língua é clareza na transmissão da mensagem (sem ambiguidades). Este pequeno exemplo deu bem a ideia de que não houve o cuidado que se exigiria na redação dum documento tão importante na língua. Aliás vários outros lapsos se detetam no texto do documento, o que bem justifica a sua revisão.
Como se sabe, para o Acordo entrar em vigor era também necessário, no texto original, que todos os Estados signatários o ratificassem. Por isso esteve na gaveta muitos anos. Portugal mantinha-se indiferente; mas o Brasil, desejoso de afirmar a sua língua como grande potência emergente (e também desejoso de entrar nos PALOP, que seguiam a norma do português europeu) ficou impaciente.
Depois de se obter que a CPLP conseguisse um acordo geral em que bastava só a ratificação de três países signatários para o Acordo poder entrar em vigor, o Brasil, S. Tomé e Cabo Verde ratificaram-no.
Assim, com base nestas ratificações de 3 países, o Brasil, na interpretação a) do VC acima, elaborou um monumental Vocabulário para o novo Acordo: VOLP, com cerca de 350 000 entradas, e avançou com a entrada em vigor do Acordo no seu país em 2009. Repare-se que, no que se refere aos termos científicos, de qualquer forma o Acordo de 1990 não foi satisfeito.
Ora desde sempre que eu me tenho batido, em todas as instâncias, pela interpretação b), logo pela necessidade da existência de um VC que inclua todas as variantes da lusofonia (a Academia Galega deseja com justiça que inclua também os seus termos, porque, insiste, a sua língua também é uma variante da língua portuguesa).
Na interpretação b), a entrada em vigor do novo AO exigiria até a existência prévia (um ano antes) de um VC (dos termos comuns) para toda a lusofonia, ou pelo menos para os países nos quais o novo AO entrasse em vigor. Nesta ideia, a entrada em vigor do novo AO desobedece ao Acordo.
Repare-se que, a confirmar esta minha interpretação b), o 4.4 das Notas Explicativas do Acordo regista no fim:
c) «Os dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia .....»
Ou seja, os dicionários gerais da língua portuguesa passarão, por exemplo, a registar antónimo e antônimo, co-herdeiro e coerdeiro, abrupto e ab-rupto, etc.; em resumo, todas as variantes da língua.
Ora o vocabulário de papel VOLP brasileiro não tem algumas variantes portuguesas e tem termos que não adotamos, como o coerdeiro, ou o ab-rupto. Não serve como vocabulário geral para a língua. O mesmo poderão os brasileiros dizer dos nossos vocabulários para o Novo AO já publicados.
Note-se também que o texto c) está mais logicamente em coordenação com b), pois exige que num VC dos temos comuns, estejam todas as variantes da lusofonia (que seja completo quanto possível); enquanto na terminologia científica o que interessa é uniformizar os termos ao máximo, para que os técnicos usem exatamente a mesma linguagem nas suas comunicações ou projetos, sem quaisquer dúvidas que possam dar origem a enganos (que seja unificador, isto é, normalizador quanto possível).
Assim, em boa hora a CPLP tomou a seu cargo o empenho de realizar a língua comum pretendida, com a iniciativa de promover estas reuniões técnicas sobre o VC (para os termos comuns e não só para os termos científicos).
Sublinho, finalmente, que no início eu só defendia o VC a pensar no objetivo final que houve na mudança ortográfica feita e que a justificava. De facto, só com um VC geral poderemos dizer que estamos em presença duma língua comum planetária. Neste espírito, a entrada em vigor do novo AO nos diversos países onde já vigora, não passa de um mero preâmbulo para a constituição da língua comum almejada, e a realização dos respetivos vocabulários para o novo AO, unicamente como elementos de trabalho para a língua comum.
Agora vou mais longe. Depois de aplicar o Acordo nos meus livros, concluí que precisa de algum aperfeiçoamento nas suas imperfeições: As alterações ortográficas realizadas, algumas com violência dos hábitos de escrita, afinal pequena simplificação fizeram, e, inversamente, trouxeram incoerências, deixaram incertezas, nalguns casos provocam ambiguidades. Por exemplo, resumindo o que já referi em artigos anteriores: trouxe as incoerências do tipo “estupefação/estupefacto”; implicou a confusão escrita em “corretor” nos seus significados de intermediário e quem corrige; obrigou-nos à ambiguidade de “para”, do verbo parar, sem o acento, pois se confunde com a preposição “para”. Além disso, um VC permitirá a eventual uniformização de termos como “comummente/comumente” “hífenes/hifens”, etc.; em resumo, o aperfeiçoamento do Acordo de 1990, pois este será discutido em pormenor nas comissões científicas que vão elaborar o VC.
Esperemos que essas comissões sejam efetivamente constituídas por linguistas competentes e sensatos, que obedeçam ao critério de uniformizar e simplificar a língua, sim, mas que não lhe retirem muitas das virtualidades que os nossos ancestrais lhe foram dando. Os obreiros do Acordo de 1990 conseguiram uma obra meritória no seu objetivo difícil, mas agora não convinha que estivessem na comissão de trabalho para o VC, para evitar a teimosia em soluções que se revelaram controversas.