DÚVIDAS

Maiúscula / minúscula no início de citação

Apesar da resposta que recebi do vosso especialista T.A., datada de 26/2/99, vários amigos meus continuam a insistir que, no exemplo que apresentei, a citação referida é uma citação directa, devidamente transcrita entre aspas, apesar de surgir no meio de uma frase do autor do texto. Segundo eles, nos termos da própria resposta dada pelo vosso especialista, sendo citação directa, implicaria que a referida citação se iniciasse pelo artigo "A" em maiúscula, pois esse "A" faz parte integrante da citação directa. Pessoalmente, continuo um pouco baralhado pois também me parece que a citação é uma citação directa, embora incluída pelo autor no meio de uma frase da sua autoria. Para mim, a dúvida sobre se o "A" deveria ser maiúsculo surgiu sobretudo devido ao facto de a citação surgir no meio de uma frase do autor do texto, não sendo antecedida de dois pontos, pelo que me pareceu incorrecta a inclusão de um artigo "A" em maiúscula, no meio de uma frase, apesar de parte integrante de uma citação, assinalada com as devidas aspas. Se uma citação feita nestes termos deixa de ser considerada como citação directa (a dúvida que me ficou após a vossa resposta), então acabaram-se as dúvidas e o referido "a" tem mesmo de passar a minúscula. Recordo que a frase responsável por todas estas dúvidas foi a seguinte:

"Igualmente o texto constitucional ao afirmar no artigo 62 que "A todos é garantido o direito à propriedade privada (...) nos termos da Constituição", admite que tal garantia não é absoluta valendo apenas dentro dos limites e nos termos previstos e definidos na Constituição."

Resposta

O atraso desta resposta deveu-se à necessidade de encontrar obra de referência que tratasse de caso semelhante. As gramáticas de José Nunes de Figueiredo / António Gomes Ferreira e Celso Cunha / Lindley Cintra têm indicações muito úteis, mas não dão nenhum exemplo que, por si só, nos esclareça inteiramente.

Vejamos, com alterações, o excerto apresentado:

  1. "(...) O texto constitucional, ao afirmar no artigo 62 que "a todos é garantido o direito à propriedade privada (...) nos termos da Constituição", admite que tal garantia não é absoluta, valendo apenas dentro dos limites e nos termos previstos e definidos na Constituição."
       Ou seja (para simplificar):
  2. O texto constitucional afirma no artigo 62: "A todos é garantido o direito à propriedade privada".
       Isto é:
  3. O texto constitucional afirma no artigo 62 que a todos é garantido o direito à propriedade privada.

Em a), temos uma citação, um discurso directo ("a todos..."), introduzido por conjunção integrante (que), o que não é abonado por nenhuma das gramáticas consultadas, mas se tornou uso nos jornais portugueses a partir dos anos 60. Na imprensa, todavia, em casos como o apresentado em a), inicia-se sempre a citação com minúscula.

Emprega-se maiúscula inicial (de acordo com as gramáticas) quando a conjunção (que) se substitui por dois pontos, como em b).

Em c), temos a forma mais usual na imprensa portuguesa até aos anos 60: a apresentação das citações em discurso indirecto com o verbo regente (afirma) no presente, como é prática nas citações de livros (cf. Compêndio de Gramática de José Nunes Figueiredo / António Gomes Ferreira, pág. 285, 3.ª ed., Lisboa, sem data). Se se tratasse de declaração pronunciada por alguém, o verbo regente estaria no pretérito (afirmou), o que em princípio condicionaria o tempo do ou dos verbos do discurso indirecto que se lhe seguiria. Digo "em princípio" porque há excepção admitida na Sintaxe Histórica de Epifânio da Silva Dias nos casos em que ainda se não concluiu a acção mencionada no discurso directo. Por exemplo: "O ministro disse que a Constituição garante o direito à propriedade privada." Diferente de: "O historiador disse que a Constituição de Weimar garantia a existência de partidos políticos."

O texto a) legitima-se, como já vimos, no uso dos jornalistas, que se estendeu a outros profissionais (juristas, políticos, etc.). Mas também é autorizado pela flexibilidade que vários gramáticos admitem no que denominam de discurso indirecto livre, praticado por prosadores desde, pelo menos, o século XIX e recriado por numerosos ficcionistas do final do século XX, como António Lobo Antunes e José Saramago.

Não devemos esquecer, todavia, o seguinte: se escrevermos um texto literário, poderemos criar códigos próprios, um sistema original de comunicar com o leitor. Mas, se redigirmos um relatório, convém que o façamos sem ferir a norma ou normas adoptadas pelos nossos destinatários.

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