Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por favor, qual a forma correta? «Na hipótese de que os acionistas decidam aumentar o número de ações», ou «na hipótese de os acionistas decidirem aumentar o número de ações»?

Desde já agradeço.

Resposta:

Ambas as frases estão correctas. Em orações que completem substantivos («a hipótese de», «a impressão de», «a ideia de») é possível empregar uma oração completiva com o verbo num tempo finito («de que os accionistas decidam...») ou uma oração completiva de infinitivo («de os accionistas decidirem...»).

Pergunta:

Ao ler por curiosidade a Constituição da República Portuguesa, deparei-me com o artigo 24.º, parágrafo 2, que refere que:

«Em caso algum haverá pena de morte.»

A frase despertou-me algumas dúvidas e resolvi fazer uma busca no vosso site. Foi então que reparei que, já antes, Pedro Andrade, de Braga, tinha colocado uma questão sobre o referido parágrafo.

Ao contrário do sr. Andrade, não tenho qualquer dúvida quanto à semântica da frase e interpreto-a como um repúdio total da pena de morte pela legislação portuguesa.

Fiquei, isso sim, com dúvidas quanto à sintaxe da frase, uma vez que se trata de uma frase declarativa negativa sem a presença de qualquer elemento de negação. Estou familiarizado com a expressão «em caso algum», mas pensava que não era de uma correcção linguística suficiente para poder ser utilizada num documento como a Constituição.

Explica o Ciberdúvidas na resposta a Paulo Andrade:

«[...] posposto a um substantivo, algum assumiu, na língua moderna, significação negativa, mais forte do que a expressa por nenhum»

Sou, assumidamente, um leigo em linguística. No entanto, há três questões que me assaltam após ler a explicação do Ciberdúvidas:

1. A língua moderna existe por oposição a quê? À língua clássica? Como se distingue uma da outra em pormenores tão ínfimos? O bué, fazendo parte da língua moderna, teria lugar na Constituição?

2. «A palavra algum assumiu...» Assumiu? ...

Resposta:

As três primeiras perguntas feitas pelo consulente são pertinentes, mas deve ter-se em atenção que a aceitação de um uso não acarreta a de todos os usos: prevê-se por isso que bué ainda tenha de esperar bastante tempo até chegar ao registo formal e especializado. Já o caso de algum me parece relevar de outra ordem, envolvendo factores sintácticos e semânticos.

O que acontece com «em caso algum» parece-me semelhante à colocação de palavras e expressões negativas que surjam no começo de uma frase. O valor negativo (ou a polaridade negativa) é normalmente marcado pelo advérbio de negação não, seguindo-se depois as expressões negativas, uma vez que em português existe a dupla negação (ao contrário do inglês normativo):

1.

(a) «Não haverá pena de morte em nenhum caso.»
(b) «Não haverá pena de morte em caso nenhum.»
(c) «Não haverá pena de morte em caso algum.» 

O contraste é mínimo entre as frases em 1: no entanto, em 1(a) parece salientar-se apenas o conjunto de casos existentes, enquanto em 1(b) e 1(c) também se contempla o conjunto de casos possíveis; mas a diferença entre 1(b) e 1(c) esbate-se completamente, podendo-se considerá-las sinónimas.

Quando as expressões sublinhadas em 1 são deslocadas para o começo da frase, segue-se a regra geral que impede duas marcas de negação antes do verbo de uma frase; por conseguinte, não se emprega o advérbio não:

2.

(a) «Em nenhum caso haverá pena de morte.»
(b) «Em caso nenhum haverá pena morte.»
(c) «Em caso algum haverá pena de morte.»

Em 2(c) mostra-se que a expressão negativa se comporta do mesmo ...

Pergunta:

Criou-se há pouco tempo o vocábulo "cadeirante" aqui no Brasil para substituir, creio, o circunlóquio "usuário de cadeira de rodas" ou talvez seja mais um eufemismo. Aliás, há uma prodigalidade de inventar expressões amaneiradas ou adocicadas neste país: os aleijados foram suplantados pelos "deficientes físicos", os cegos chamam-se "deficientes visuais", os surdos são agora "deficientes auditivos", os doidos foram substituídos pelos "deficientes mentais", os leprosos são "hansenianos", os mongolóides passaram a denominar-se "portadores da síndrome de Down", as crianças retardadas ou atrasadas são "excepcionais ou especiais" (como se as demais crianças não fossem especiais!), os velhos passaram a chamar-se "os da terceira idade ou melhor idade". (Gostaria de entender por que há tanta preocupação com eufemismos. Não é melhor dizer a verdade? Ocorre, porém, que a verdade muitas vezes dói...)

Tudo isso são caricaturas lingüísticas de mau gosto. Não me deixo levar por tais leviandades de expressão. Daqui a uns dias os inventores de bizantinices eufemísticas talvez queiram corrigir a Bíblia: cegos, coxos, paralíticos, leprosos, velhos, surdos, lunáticos, doidos, mudos etc. Está errada a Bíblia? Pois bem, no Brasil existe esta mania de quererem mascarar a realidade (não sei se a mesma coisa se dá em Portugal).

Quero voltar ao vocábulo "cadeirante". Ora, de amar temos amante, de secar temos secante etc. Existe todavia o verbo "cadeirar" para que se abone o "cadeirante"? Parece-vos bem formado o neologismo "cadeirante", ou não passa de mais um abuso? Desejo conhecer-vos a opinião.

Muito grato.

 

Resposta:

Muitos nomes e adjectivos terminados em -nte têm origem numa forma verbal latina, o particípio presente. Tal significa que tais nomes e adjectivos pressupõem um verbo, como bem observa o consulente. Por outras palavras, se existe andar e ouvir, podemos formar andante e ouvinte; mas dado que não existe *"cadeirar", à forma "cadeirante" parece faltar respaldo histórico-morfológico. No entanto, o Dicionário Houaiss já considera o elemento -nte um sufixo como outros e não como marca da antiga flexão latina: «a extensão da ocorrência e freqüência do suf. permite seu uso como se de f. verb.: baritonante < *baritonar». É deste modo que a forma cadeirante encontra alguma legitimidade, embora possa não ser do agrado dos mais puristas.

 

N.E. (18/07/2022) O adjetivo e, também, substantivo cadeirante («aquele ou qem se desloca numa cadeira de rodas») já se encontra dicionarizado. Por exemplo, na Priberam, no Dicionário Online de Português, no Meu Dicionário.Org., ou no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. E, ainda, aqui, aqui e

Pergunta:

Será correcto pronunciar as palavras soubeste, soubesse como "sóbeste", "sóbesse"? Não será correcto na oralidade abreviar o "ou" para "ó", como quando dizemos por exemplo «dois "ó" três...» ou mesmo «p'rá e p'ró»? Aliás, nós no Sul [de Portugal] nunca pronunciamos "ou", mas sim "ô", logo no máximo diremos "sôbesse"…

Resposta:

Na pronúncia de Lisboa e em grande parte do Centro e do Sul de Portugal, o par de letras <ou> já não se lê como ditongo — [ow] ou [ɐw] —, mas como um ó fechado — [o]—, na sequência de um fenómeno de monotongação, que consiste em um ditongo passar a ser articulado como uma vogal simples. No entanto, em certos registos mais populares, o antigo ditongo pronuncia-se como ó aberto, em posição pré-tónica: "róbar", "tórada", "sóbeste". Do mesmo modo, no discurso mais informal do Centro e do Sul, acontece que a conjunção ou soa como ó, confirmando-se assim a descrição do consulente. Porém, é de sublinhar que se trata de uma pronúncia não aceite pelos normativistas, que preferem o ó fechado ("rôbar", "tôrada", "sôbeste", "dois ô três").

Note-se que se escreve prà e prò, que, respectivamente, são contracções de para a e para o. Estas contracções não pressupõem o ditongo [ow]/[ɐw].

Pergunta:

«Fazer uma tempestade num copo de água» pode ser considerado uma personificação (figura de estilo)?

Resposta:

Não, porque não se atribuem características humanas a coisas ou animais. Entre as figuras de estilo que é possível identificar na expressão, temos:

a) a metáfora, porque «tempestade» e «copo de água» significam, respectivamente, «grande problema» e «pequeno problema»/«problema nulo»;

b) o paradoxo, dada a impossibilidade de o fenómeno atmosférico aludido se produzir no espaço de um copo de água.

c) uma hipérbole, porque mesmo que em linguagem figurada se «agitem as águas» num copo, o resultado nunca será uma tempestade, a não ser por exagero.