Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Preciso de ajuda para fazer a análise sintática completa da seguinte frase, de acordo com as gramáticas tradicionais:

«Eles não se vexam dos cabelos brancos.»

Obs.: Se o verbo vexar é transitivo direto, devo afirmar que «dos cabelos brancos» é adjunto adverbial? E qual é a função de se (se = partícula sem função, que é exigida pelo verbo; ou se = objeto direto? Como saber?)?

Agradeço-lhes imensamente pela análise sintática completa e pelos esclarecimentos. Parabéns pelo excelente trabalho!

Resposta:

Sugiro a seguinte análise, adoptando a Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959:

«Eles»: sujeito;

«não se vexam dos cabelos brancos»: predicado;

«dos cabelos brancos»: adjunto adverbial ou complemento verbal (objecto indirecto).

O verbo vexar, como envergonhar e outros verbos que exprimem também sentimento (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 308, e Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa, pág. 178), pode seleccionar um objecto directo, em frases semelhantes à seguinte:

«Os cabelos brancos não vexam os mais idosos.»

No entanto, quando usados pronominalmente, estes verbos passam a ter como parte integrante o pronome reflexo se (envergonhar-se, vexar-se), o qual, por essa razão, não desempenha qualquer função sintáctica.

Mais controversa pode ser a classificação do constituinte «dos cabelos brancos», porque há gramáticos tradicionais que preferem analisar um constituinte introduzido por preposição e seleccionado por um verbo como adjunto adverbial, atribuindo-lhe um valor circunstancial (cf. Bechara, op. cit., pág. 421). Nesta perspectiva, «dos cabelos brancos» será o mesmo que «por causa dos cabelos brancos», ou seja, uma circunstância de causa.

Ainda no âmbito tradicional, outros gramáticos diriam que «dos cabelos brancos» é um complemento verbal. É o caso de Evanildo Bechara (idem, págs. 419/420), que o definiria como complemento relativo. Cels...

Pergunta:

Gostaria de poder fazer uma tréplica em relação à construção «A ou B, complementando com C». A dúvida original não foi solucionada pela construção lógica [ARBITRARIAMENTE] utilizada. A questão é exatamente saber que construção lógica adotar:

(A V B) Λ C ou A V (B Λ C)

Ora, substituindo-se a vírgula pela conjunção aditiva e (Cunha e Cintra), a estrutura da frase «A ou B, complementando com C» ficará:

A V B Λ C

Para a lógica booleana, o conectivo ou (V) equivale ao sinal de adição (+) e o conectivo e (Λ), ao de multiplicação (.). A partir daí, vale a regra de prioridade das operações fundamentais envolvidas numa expressão matemática: a multiplicação tem prioridade sobre a adição. Logo, a expressão A V B Λ C se reduzirá a:

A + B.C

Em conclusão, C só se aplica a B. Não cabe qualquer dúvidda quanto a isso. Quem estudou lógica booleana e trabalhou com circuitos integrados TTL sabe muito bem disso. Podemos afirmar com toda certeza que a construção em debate corresponde ao circuito eletrônico assim formado:

Uma porta OR (em inglês) que tem por entradas o valor A e o resultado de B AND C.

Noutros termos, somente oficiais aviadores terão de atender às opções 1, 2 ou 3 (a uma ou a mais de uma).

P. S.: Além do mais, no caso concreto, não haveria sentido em distinguir oficiais aviadores dos demais candidatos de nível superior (utilizando um OU). Em todo caso, espero ter sid...

Resposta:

A análise e a argumentação apresentadas são muito interessantes, porque há realmente propostas de análise semântica que se inscrevem ou se inspiram na lógica. Contudo, do ponto de vista da sintaxe da língua portuguesa, a oração reduzida de gerúndio com valor de oração adjectiva «complementando com uma das opções a seguir» tanto tem por antecedente «curso de formação de Oficiais Aviadores» como toda a estrutura que inclui a coordenação de «curso de graduação de nível superior concluído em qualquer área de formação» e «curso de formação de Oficiais Aviadores» mediante a conjunção ou.

Uma chamada de atenção para este tipo de oração gerundiva: no âmbito da gramática prescritiva, há quem condene o seu uso por se tratar de um galicismo; outros contestam esta posição e lembram que tal oração está atestada em português medieval (ver Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, João Sá da Costa Editores, 1984, pág. 610). Seja como for, é curioso verificar que a sua paráfrase por estruturas relativas poderia desambiguar a frase. Duas paráfrase são possíveis:

1) Curso de graduação de nível superior concluído em qualquer área de formação ou curso de formação de Oficiais Aviadores, que se complemente com uma das opções a seguir.

Em 1, «que se complemente com uma das opções a seguir» tem por antecedente «curso de formação de Oficiais Aviadores», e o verbo está no singular, «complemente». O antecedente é, em princípio, «curso de formação de Oficiais Aviadores» e não «Curso de graduação de nível superior...», por um critério de proximidade.

Observe-se agora a seguinte frase:

2) Curso de graduação de nível superior concluído em qualquer área de formação ou curso de formação de Oficia...

Pergunta:

Na frase «Bem, acho que vou dormir», qual é a função sintáctica de bem?

Morfologicamente é um advérbio, não é?

Obrigada.

Resposta:

Bem pertence a uma subclasse dos advérbios modificadores de frase, a dos advérbios conectivos, conforme refere João Costa, em O Advérbio em Português Europeu (Lisboa, Edições Colibri, pág. 53/54). Os advérbios conectivos «desempenham uma função textual, estabelecendo relações e nexos entre frases ou constituintes» (ibidem). Em relação ao uso de bem em frases como a apresentada na pergunta, João Costa explica que «[...] o advérbio bem [...] só pode ser interpretado como advérbio conectivo [...] [quando se encontra] em posição inicial de frase, seguido de uma pausa». É o caso da frase em análise.

Do ponto de vista da gramática tradicional, há uma certa dificuldade em precisar a função sintáctica deste uso de bem. Em princípio, classificar-se-ia como um complemento circunstancial. No entanto, mesmo em gramáticas tradicionais é manifesta a consciência de os advérbios constituírem uma classe funcional e semanticamente heterogénea; por exemplo, Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (pág. 538), advertem que «[...] alguns advérbios aparecem, não raro, modificando toda a oração». Saliente-se que, à luz de abordagens mais recentes, que integram resultados da investigação em linguística e visam o contexto escolar, como é o caso do Dicionário Terminológico (DT), é adequado analisar sintacticamente o advérbio conectivo bem como um modificador de frase.

Pergunta:

Os dicionários de português portugueses também poderão ser usados no ensino público do Brasil, em substituição dos brasileiros, pelos alunos que assim o desejarem?

Em Portugal, os alunos que optarem pelos dicionários de português brasileiros poderão, na escrita e nos exames escritos, usar os vocábulos conformes às ortografias e acentuações dos ditos dicionários? Isto é: patrimônio e não património, moleque e não rapaz, dilatar e não eliminar, etc.; ou alternar no decurso do texto ora uns ora outros, por exemplo: «Eu vi dois moleques. Mas o meu irmão afirma que viu três rapazes.» «Este fato ultrapassa-me, porque de facto não tenho a certeza», etc.

É o fim dos brasileirismos?

Os meus sinceros agradecimentos. 

Resposta:

Considero que os dicionários portugueses devem ser utilizados no Brasil — não sei é se isso é prática efectiva ou aceite. Mas também me parece que o problema levantado pelo consulente não pode ser totalmente resolvido ou orientado por um acordo ortográfico. É verdade que existe facultatividade entre patrimônio e património, e esta é uma questão gráfica correspondente a aceitar a variação relacionada com certas diferenças entre o português do Brasil (PB) e o português europeu (PE) a respeito da pronúncia das vogais seguidas de consoante nasal. Contudo, o outro aspecto focado, relativo a diferenças lexicais e semânticas, não se encontra codificado em nenhum acordo de uso vocabular. Quero dizer que, neste domínio, embora a norma não esteja explícita, o critério a seguir é o da coerência dialectal de termos e construções: a ocorrência de um termo característico do PB ou do PE verifica-se sempre ao lado das outras marcas da respectiva variedade. Assim, dizer «Eu vi dois moleques. Mas o meu irmão afirma que viu três rapazes» releva mais de um jogo metalinguístico que foca precisamente a existência de termos diferentes para uma mesma realidade como manifestação da diversidade de normas no mesmo sistema linguístico.

Seja como for, em relação ao ensino formal da língua materna, parece não se dar atenção às especificidades das variedades maternas do português falado pelos alunos. Mas, ainda que tal aconteça, admito que a cada país de língua portuguesa, sobretudo nos que têm tradições normativas próprias, como o Brasil e Portugal, seja difícil aceitar usos não conformes aos respectivos padrões linguísticos no contexto do sistema de ensino, sobretudo em situação de exames. Talvez uma maior consciência da diversidade de normas no sistema linguístico do português possa ser o princípio da criação de parâmetros de correcção transnormativos.

Pergunta:

Estou a fazer uma tradução do inglês e debato-me com a expressão inglesa «a ten-thousandfold world system», uma expressão que pode ter leitura tanto do ponto de vista da diversidade como da dimensão. Tal como, creio, por ex., a palavra quádruplo, a qual tanto se pode referir a quatro nuanças de uma situação como a uma dimensão quatro vezes maior.

Procurei no dicionário (Houaiss) e vi que a palavra miríade significa: «número, grandeza, correspondente a dez mil».

Do mesmo modo que a quatro corresponde quádruplo, que palavra deve corresponder a dez mil? Lembrei-me de "miriadécuplo", mas tenho sérias dúvidas.

 Agradeço a resposta que me deram. Porém, a minha referência à expressão inglesa pretende apenas indicar o enquadramento. Na verdade, a minha questão é somente:

– se a quatro corresponde quádruplo, a cinco corresponde quíntuplo, a nove corresponde nónuplo, a noventa corresponde nongêntuplo, que termo corresponde a dez mil? Será miriadécuplo, já que uma miríade são dez mil?

Agradecido pela atenção.

Resposta:

Penso que miriadécuplo é um neologismo possível, mas não sei se a sua interpretação em português é tão fácil como como a de ten-thousandfold em inglês... Duvido e passo a apontar duas objecções a respeito da aceitabilidade de tal palavra:

1. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática da Língua Portuguesa, pág. 375), os membros da subclasse dos numerais multiplicativos não têm todos o mesmo uso: enquanto dobro, duplo e triplo são formas correntes, «os demais pertencem à linguagem erudita». Estes gramáticos, sugerem o emprego alternativo do «numeral cardinal seguido da palavra vezes: quatro vezes, oito vezes, doze, etc.». Estas afirmações afiguram-se-me controversas, porque quádruplo, quíntuplo e sêxtuplo também são formas correntes, pelo menos em português europeu. Porém, é verdade que nónuplo já me parece pouco corrente e nogêntuplo menos corrente ainda. Sendo assim, «dez mil vezes» seria preferível a miriadécuplo.

2. Os numerais multiplicativos formados com o sufixo -plo (acrescente-se -plice) costumam ter por base de derivação numerais de origem latina ou já criados em português, conforme descreve o Dicionário Houaiss:

«[existe] uma série de lat. -plus — tipo duplus, triplus etc. —, que aparece no port. (numerais multiplicativ...