Ana Martins - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ana Martins
Ana Martins
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e licenciada em Línguas Modernas – Estudos Anglo-Americanos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestra e doutora em Linguística Portuguesa, desenvolveu projeto de pós-doutoramento em aquisição de L2 dedicado ao estudo de processos de retextualização para fins de produção de materiais de ensino em PL2 – tais como  A Textualização da Viagem: Relato vs. Enunciação, Uma Abordagem Enunciativa (2010), Gramática Aplicada - Língua Portuguesa – 3.º Ciclo do Ensino Básico (2011) e de versões adaptadas de clássicos da literatura portuguesa para aprendentes de Português-Língua Estrangeira.Também é autora de adaptações de obras literárias portuguesas para estrangeiros: Amor de Perdição, PeregrinaçãoA Cidade e as Serras. É ainda autora da coleção Contos com Nível, um conjunto de volumes de contos originais, cada um destinado a um nível de proficiência. Consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e responsável da Ciberescola da Língua Portuguesa

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O que distingue um deíctico de uma referência co-textual? Poderia fornecer exemplos?

Resposta:

Uma nota prévia: os dois termos que a consulente apresenta para contraponto não estão ao mesmo nível conceptual. A diferenciação deve ser estabelecida ou entre deíctico de referência situacional e deíctico de referência (co)textual, ou, mais simplesmente, entre deíctico indicial e deíctico textual.

Esta distinção é parte de uma tríade tipológica que ascende a Karl Bühler (1934)1.

Deixis indicial ou deixis exofórica: o deíctico aponta para o tempo, os espaços, os objectos e entidades da situação de enunciação; o deíctico aponta para uma evidência acessível ao locutor e alocutário:

«O que é que é isso que trazes aí?»

Deixis textual ou deixis endofórica: o deíctico aponta para um segmento de texto precedente (anáfora) (i) ou posterior (catáfora) (ii):

i) «O Zé não teve danos cerebrais. Isso mesmo foi confirmado pela TAC.»

ii) «O que se passou foi isto: O Zé estava a conversar muito bem e de repente desmaiou.»

Segundo Bühler, no que respeita à deixis textual, o conjunto dos signos que formam um texto na sua dimensão linear é concebido como uma espécie de espaço mental que apresenta certas analogias com o espaço mostrativo situacional. Também num texto há um «eu», que é o locutor, um «aqui», que é o lugar onde o locutor se situa em relação ao que já disse e ao que vai dizer, e um «agora», que, para cada signo, é o instante da sua emissão na cadeia falada. Bühler passa então da deixis situacional à deixis textual através de um raciocínio de analogia.

1 Bühler, K. (1934). Sprachtheorie: Die Darstellungsform der Sprache. Jena. Gustav Fischer.

Pergunta:

Na nova terminologia gramatical [ensino básico e secundário em Portugal], porém passou a ser um advérbio. A minha dúvida é a seguinte: em frases como «Comi o gelado, mas não gostei» e «Comi o gelado, porém, não gostei», como explico aos alunos que «mas» é conjunção, e «porém» é advérbio (conectivo)?

Obrigada!

Resposta:

A resposta à sua pergunta está no próprio Dicionário Terminológico, no verbete «advérbio conectivo»:

«Os advérbios conectivos distinguem-se de conjunções com valor idêntico por poderem, por exemplo, ocorrer entre o sujeito e o predicado.»

Assim:

«Todos digeriram bem o gelado. O João, porém/contudo, vomitou-o.»

Tal prova que porém não tem por função introduzir orações, função que é prototípica das conjunções.

Pergunta:

Gostaria de saber se quando se diz «Esta caixa está partida», referindo-se a uma caixa de cartão em vez de se dizer «Esta caixa está rasgada», é um erro semântico.

Resposta:

Sim, é um erro semântico. O verbo partir é compatível com argumento com o traço [+ quebrável].

Pergunta:

Se, de acordo com a definição disponibilizada pela TLEBS, a oposição complemento/modificador assenta no critério seleccionado/não seleccionado por «qualquer elemento do grupo sintáctico de que faz parte», como justificar, à luz desse critério, que, num livro de exercícios de Português, «preto», na frase «O chocolate preto não agrada a toda a gente», seja classificado como complemento do nome e «deste cabelo», na frase «A cor deste cabelo é pavorosa», seja classificado como modificador do nome? Que características lexicais dos nomes «chocolate» e «cor» justificam as referidas classificações?

Obrigada.

Resposta:

Uma nota prévia: a TLEBS foi revogada, e a base terminológica em vigor para os ensinos básico e secundário encontra-se no Dicionário Terminológico desde Janeiro de 2008.

O complemento do nome é realizável por um grupo preposicional ou por um adjectivo relacional:

«A corrida de automóveis está prestes a começar.»
«A morte de civis é uma tremenda injustiça.»
«A invasão de Timor deu-se em 1974.»
«A estupidez do homem grassa por todo o lado.»
«A estupidez humana grassa por todo o lado.»
«Ficou demonstrada a solidariedade da nação.»
«Vamos desencadear acções de solidariedade nacional.»

O modificador do nome apositivo é realizável por um grupo nominal ou por uma relativa explicativa:

«Camões, o grande poeta, morreu na miséria.»
«Camões, que é o poeta dos poetas, morreu na miséria.»

O modificador do nome restritivo é realizável por um grupo adjectival, uma relativa restritiva ou grupo preposicional.

«Os alunos estudiosos passaram no exame.»
«Os alunos que estudaram passaram no exame.»
«Os alunos do Colégio de S. Gregório passaram no exame.»

Em «O chocolate preto não agrada a toda a gente», preto é modificador do nome restritivo.

No segundo exemplo apresentado — «A cor deste cabelo é pavorosa» —, está em causa saber se o grupo preposicional «deste cabelo» corresponde a um complemento do nome ou a um modificador restritivo do nome. A resposta é que se trata de um modificador restritivo do nome. É que os nomes que seleccionam argumentos, e portanto nomes predicadores, são nomes derivados (deverbais,...

Pergunta:

Ando no 10.º ano, e no manual de Português há uma pergunta em que eu tenho dúvidas, tem que ver com o princípio da interacção discursiva.

Dão-me a frase «Exmo. Sr. Miguel Esteves Cardoso», e pedem-me para referir o princípio da interacção discursiva presente nela.

Pode-me ajudar?

Resposta:

«Princípios reguladores da interacção discursiva» é uma expressão que aparece em vários domínios do Programa de Português dos 10.º, 11.º e 12.º anos, em vigor. No Dicionário Terminológico, a entrada «Princípios reguladores da interacção discursiva» abre para uma amálgama de conceitos derivados de diferentes propostas teóricas: do Princípio de Cooperação de Grice e da Teoria da Relevância de Sperber e Wilson. Juntou-se a estes conceitos, ainda, a definição de «forma de tratamento».

Em relação à sequência visada na pergunta que é feita no manual, a resposta deverá ser «forma de tratamento», que, em rigor, não é nenhum «princípio de interacção», dado que os princípios actuam sobre actos comunicativos (e «Exmo. Sr. Miguel Esteves Cardoso», só por si, não constitui nenhum acto comunicativo).