« (...) Não é um livro extenso e a sua leitura é rápida, prazerosa. A frase, porém, não é daquela simplicidade que agrada ao simplismo desta nossa época. (...)»
É um livro de 1988. A editora? A Guimarães Editores. O autor? Agostinho da Silva (1906-1994). Entre outros livros seus, este seu livro tem uma especial importância, publicado, simbolicamente, no ano em que, de Pessoa, Portugal celebrava o centenário do nascimento.
O título é instigante: Um Fernando Pessoa. Um, pois que é a leitura de Agostinho da Silva. “Um”, como quem diz «o meu Fernando Pessoa». Livro axial pela original interpretação de Mensagem e da heteronímia. Um livro que foi lido e sublinhado. Nos tempos que correm, não estou certo de que, nos cursos de formação de professores (se os há dignos desse nome – e creio que não há) este seja um livro e um autor conhecidos. Não é um livro extenso e a sua leitura é rápida, prazerosa. A frase, porém, não é daquela simplicidade que agrada ao simplismo desta nossa época. É antes uma frase longa, por vezes cheia de associações, dando a ver um pensamento que se move por silogismos profundos, por profundas formas de relacionar causas e consequências, de inferir (que verbo, meu Deus!) o que está por detrás do que, parecendo evidente, se esconde. É um livro que pede, de facto, a colaboração do leitor. Há reedição? Não sei, neste momento, se foi reeditado e tenho comigo, comprado há muitos anos (em 1995, um ano depois da morte do professor Agostinho da Silva), a primeira edição.
Por que razão falo dele hoje neste "Directo à Leitura"? Por uma razão que não tem que ver só com a impressão de, presentemente, quem, sendo professor de Português, ou de História, ou de Filosofia, não saber quem foi Agostinho da Silva. Haverá, decerto, quem o leia ainda, quem recorde a figura e a obra do autor de Sete Cartas a um Jovem Filósofo. Quanto mais não seja porque as Conversas Vadias, um programa da RTP, uma série de 12 conversas, estão em arquivo online e haverá quem as veja e oiça. Mas a razão mais forte é ter relido – numa dessas madrugadas infindáveis em que uma insónia nos faz desarvorar até à antemanhã – este livrinho do meu final de adolescência, em tempo de formação de leitor. Há dias, falando com um colega mais velho (um professor que lê) recordávamos precisamente Agostinho da Silva. Fui eu relê-lo trocando as voltas à insónia e, em vez de me entregar com pertinácia a um sono que não vinha, lá me pus a ouvir as frases e as imagens deste breve livro. E quero partilhar essa leitura., Pode ser talvez que um ou outro professor, um ou outro aluno (mas não andam todos a perder tempo nas redes sociais? Não andam todos a TikTokar?) descubram Fernando Pessoa através da boa escrita do Professor Agostinho da Silva.
Frases, palavras, um português de fino recorte, de retórica apurada e pura, por elas se vê um compromisso de Agostinho da Silva para com o seu objecto de estudo: Pessoa e a Mensagem e Pessoa e as suas personas. Por elas – pelas frases e imagens – se adivinha o compromisso do professor para com Portugal. Como abre o livrinho? Assim: «Àqueles a quem, não querendo mal, também especialmente não amam concedem os deuses uma vida fácil e benigna, que os faz, a eles e aos restantes, acreditar em protecção celeste; aos outros, porém, àqueles cuja carreira se vê essencial aos destinos do mundo, vendem os deuses, e bem caro, todos os dons que os cumularam; e, porventura, o preço mais alto que reclamam da sua mercadoria é o de, a cada momento realmente importante da vida, nada disporem como que de maneira fatal, deixando que o seu amado possa, em plena liberdade, escolher o que mais é do seu agrado; e aqui a maior parte se perde: porque à chama que os tornaria celestes preferem a temperada medianidade que para sempre os prende à Terra» (p.13). É um registo erudito, cheio de subtextos e, desde logo, o ver de Pessoa «morrem jovens os que os deuses amam» ou a ideia de que, na vida, há que escolher entre ficar em casa «contente com o seu lar» ou, com esforço, recusar ser «cadáver adiado que procria», mera «besta sadia». Pessoa foi desses: assumiu desde cedo e voluntariamente uma vida que, vivida a sós, lhe possibilitasse ser «plural como o universo». Neste livrinho Agostinho da Silva é claríssimo na compreensão do enigma-Pessoa: para o autor de Mensagem jamais a Inglaterra seria solução. «O melhor que ela lançava já Portugal o fizera, muito antes dela», escreve. A capacidade de ler Pessoa por parte dum leitor que foi sempre simpatizante dos símbolos e nunca teve a cínica disposição dos «positivistas», ou dos «homens de ciência» face à existência e seus trilhos ocultos, é impressionante porque Agostinho da Silva explica, como se estando dentro da cabeça e da visão de mundo de Pessoa, as razões da heteronímia.
A epopeia lírica de 1934, projecto de escrita começado em 1913, tem que ver com uma posição do poeta perante o seu tempo. Portugal, ao contrário de Inglaterra, não fez ciência para dominar, nem economia para explorar, nem política para exercer poder maquiavélico sobre o mundo. É a visão idealizada de Agostinho da Silva? Pode ser. Mas lendo Pessoa, aquelas cinco capacidades críticas que o autor da Mensagem pede aos leitores coexistem em Agostinho da Silva: intuição, simpatia pelo simbólico, cultura, adesão às relações entre o que está em cima e o que está em baixo, e, enfim, a inteligência. Inteligência que analisa e decompõe. Se a epopeia de Pessoa é o momento em que Agostinho da Silva fala de Pessoa como falando de si próprio, e se, nessas páginas iniciais, se condena, com Pessoa, a paz podre duma Europa corrupta e dum Portugal vendido ao materialismo da Europa, a verdade é que os poemas que constituem as secções do livro de 34 são sinteticamente explicados. Cada uma das personagens da história (os sete poemas de "Os Castelos", ou "O Grifo", ou "As Quinas") é como que escalpelizada: «Se a força de alicerce de Portugal vem de ter afirmado a existência de uma Europa que duas vezes se perdeu de si própria […], a sua força de salvação virá de ter incluído e, seu brasão as chagas de Cristo, não pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente» (p.20). E segue-se a interpretação dessas quinas simbólicas.
Para a explicação dos heterónimos, Agostinho da Silva segue a tábua de Pessoa: Reis é o latinista e semi-helenista cujo estilo – «o talhe da estrofe» – nasce da compreensão íntima do que foi o helenismo. Pessoa-Reis, segundo Agostinho, sendo um jesuíta, um médico, faz da poesia a linguagem curativa da alma humana. Reis escreve pela mão de Pessoa a decadência da cultura antiga. O seu estoicismo e cepticismo têm que ver com a medicina: como médico desconfia dos poderes do homem sobre a vida; como médico «tem a paciência da análise e a paciência humana». Uma filosofia prática e moral, não um teórico puro, assim lê Reis o autor de Um Fernando Pessoa. Uma tese importante ao ler o autor das odes: Reis entende que a vida é o espaço-tempo em que devemos pôr tudo quanto somos no mínimo que fazemos. Outra: «A nossa obrigação é a de pôr flores mesmo nas horas mais difíceis ou naquelas que sabemos mais inúteis e perdidas, exactamente como a sentinela põe a flor da sua dignidade no tumulto da erupção, e o cortesão põe a flor da sua ironia na brutalidade da ordem de suicídio» (p.47). Só assim, imperturbáveis, escreve Agostinho, «os deuses nos poderão aceitar como de algum modo dignos de sua companhia ou, pelo menos, de sua imperturbada serenidade, quando virem que nos não agitamos em vão nem clamamos contra uma sorte que nem eles próprios poderão modificar» (p.48).
Por estes dias de reflexão, de meditação, de horas decisivas, dei por mim a ler Ricardo Reis depois de lido Agostinho da Silva. As páginas sobre o cantor de Lídia (significa liberdade, este nome), são (deixem-me usar esta palavra antiga) um “bálsamo”. É que – e o mesmo acontece com as páginas dedicadas a Caeiro e a Campos – Agostinho da Silva mostra como a existência através da leitura se torna mais terna, isto é, mais aceitável. Ao escrever sobre Caeiro (depois da pristina descrição física que revela já uma disposição mental), há páginas esplendorosamente belas. Escolho esta passagem: «Se os deuses são só corpo, será então o corpo e não a nossa alma ou espírito o que existe de imortal; o que estará certo em nós é, portanto, aproximarmo-nos o mais possível da estabilidade, da segurança, da pureza, diríamos da virgindade do corpo […]» (p.58).
Agostinho da Silva é, a vários títulos, indispensável quando falamos, hoje, de formas de cativar para a leitura os mais novos e mesmo os da minha geração (penso nos políticos que não lêem, que nunca leram e serão, então, sem alma e espírito, pouco amados pelos deuses que lhes deram vidas fáceis…). Ou mesmo os mais velhos. Ler e viver, pois. Dei por mim a imaginar, neste ano de 500 anos de Camões, 50 de 25 de Abril e 100 de Mário Soares; dei por mim a imaginar (ia a insónia já solta) como seria uma aula em que, lendo, fazendo frente ao ruído e à incivilidade da maioria dos alunos, um professor lesse um trecho em voz alta deste magnífico livrinho. Estranhariam? Rir-se-iam? Olhar-se-iam com o olhar típico de quem não entende e, por não entender, acha que o outro é parvo? Talvez. Lembro-me bem de alguns entrevistadores que, naquele programa, nas Conversas Vadias, não compreenderam nunca que o professor Agostinho da Silva era quem, no fundo, podia rir-se do cinismo de alguns ou da perplexidade de outros ao entrevistarem-no. Estavam, de facto, perante alguém que jamais tinha lido, ou viria a ler, Bret Easton Elis, ou jamais viria a citar Lipovetsky. Agostinho da Silva pertencia a outra estirpe de intelectuais: esses bem próximos da vida concreta das pessoas e que, na polis, dando a ler o seu Fernando Pessoa, compreendeu algo de simples e verdadeiro: a sociedade que criámos fez de nós exércitos prontos para a guerra: a guerra da competição, a guerra da economia que mata, a guerra do lucro e do dinheiro, da fama e da vida adulta. Agostinho da Silva é muito necessário no nosso tempo de tanta adulteração. Este livro, no fundo, pede reedição urgente (se acaso já existe, erro meu e escreverei para repor alguma justiça). «Neste mundo de corpos, de coisas, de sensações e de perfeito negar-se ao pensamento, até os sonhos são nítidos, tão ordenados, tão contempláveis em sossego como uma fotografia» (p.59). Fala-se já desse Cristo que desce à Terra no oitavo andamento de O Guardador de Rebanhos. Explico: Agostinho da Silva fala-nos desse “Menino Jesus” verdadeiro, o único ser cuja natureza é compatível com a dele, Caeiro, porque, ensina o poeta a olhar para as coisas, recusa a corrupção da cidade, vem viver para o campo onde vive Caeiro. Mas de que falo? Dum livro! Melhor: dum testemunho de vida de alguém de quem nos devíamos lembrar e ler: Agostinho da Silva ou o ensaísmo num patamar vital, claro nos princípios, seguro na escrita, sensível na inteligência. Não estamos todos precisados desses três milagres?
Sim, este Um Fernando Pessoa foi escrito tendo a noção exacta da hora que o país atravessava: não só os 100 anos de Pessoa, mas a hora europeia em que, para usar uma expressão que fez eco, nós tínhamos «A Europa connosco». É talvez por aí que este livro pode ser hoje descoberto. Agostinho da Silva, ao ler Pessoa, logo nos esclarece quanto a um facto terrível: o criador dos heterónimos, facilmente, poderia ter escolhido a Inglaterra para ser o Conrad futuro.
Cf. Banda desenhada francesa recria últimos dias de vida de Fernando Pessoa
Artigo do escritor, ensaísta e professor português António Carlos Cortez, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias em 8 de março de 2024. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.