Vivemos tempos conturbados em que o diálogo, esse alicerce da interação com o outro, essa base de aprendizagem, de conhecimentos, de resolução dos mais variados conflitos, desde a esfera doméstica, os lares que habitamos até à esfera pública, da política e dos centros de decisões, simplesmente parece ter-se extinguido. Ter talvez migrado para uma outra dimensão muito longe do nosso mundo e das nossas vivências. Habitamos sob o jugo dos impérios de um narcisismo doentio, de um egocentrismo que corta muitas vezes, pela raiz, qualquer tentativa de diálogo, preferindo enterrar países e povos sob as areias movediças do desentendimento, do conflito.
Talvez por tudo isso, o livro intitulado Diálogos com Lídia Jorge da autoria do professor catedrático emérito da Universidade de Coimbra Carlos Reis, publicado recentemente pelas Edições Dom Quixote, assuma uma relevância ainda maior. Trata-se de uma publicação essencial, não apenas para alargarmos o nosso conhecimento da obra de Lídia Jorge, mas sobretudo, para nos enriquecermos com a discussão de temas atuais do mundo, da sociedade portuguesa, que nos ajudam a entender o passado e o presente e a equacionarmos o futuro.
Esta obra, que tem como precedente Diálogos com José Saramago (Ed. Caminho, 1998), destina-se, tal como refere Carlos Reis, na nota prévia, não apenas a estudiosos, mas também ao leitor comum «que deseja ter acesso à oficina de escrita, à personalidade literária que nela trabalha e às razões que a movem», ao pensamento de uma das vozes mais relevantes da Literatura Portuguesa Contemporânea.
Assim, após uma síntese magistral do percurso literário de Lídia Jorge, que acentua o diálogo crítico com Portugal em mudança, nas suas diversas vertentes, numa obra que inova, mas escuta as vozes do passado, «apreende as grandes questões do seu tempo» (p. 53), incorporando-as na narrativa o leitor principia a percorrer os sete diálogos, guiado pelas duas vozes encantatórias que dialogam na verdadeira aceção da palavra, por vezes, discordando, argumentando, contra-argumentando, sem esquecer os risos e o sentido de humor que aflora por vezes, a enfatizar um toque profundamente humano que se desprendo do discurso. E partindo da formação e aprendizagem da autora, do Algarve, dos professores marcantes do liceu de Faro, passando pela Guerra Colonial, pela publicação do primeiro livro e da literatura como proposta de liberdade (no primeiro diálogo), percorre-se a «História, memória e Identidade», visitamos «a escritora na sua oficina», contactamos com «as linguagens da escrita literária», assim como com a «escrita e lógica do romance». No diálogo seis são discutidos «os valores, ideias, ética literária», sendo tecidas considerações sobre a literatura como descendente da religião, mas também como tentativa de ultrapassar o desconcerto do mundo, como forma de problematizar o mundo. Neste âmbito, são igualmente abordados os desafios da leitura na era digital, o contacto com o público, a liberdade da escrita e a fuga a “projeções” de mercado. Por seu turno, o sétimo diálogo centra-se na “escritora para além da literatura” , da relação com outros escritores, com o meio literário, dos direitos humanos, das ideologias, da Europa.
De salientar ainda, em apêndice, uma carta de Lídia Jorge para Eduardo Lourenço, datada de janeiro de 1995, que se delineia também como testemunha de um tempo, do quotidiano, do meio literário e cultural, espelhando uma forma poética e original de pensar o mundo, sempre alicerçada na narrativa, definida modestamente pela autora como «uma conversa à distância sobre o rumor turbulento da vida e o desejo de pensar» (p.248).
Em suma, um livro que se assume como uma companhia indispensável, alicerçado na notável obra de Lídia Jorge, com quem e a partir da qual cruzamos as fronteiras do tempo e do espaço para equacionarmos questões relevantes do mundo atual, através de uma verdadeira «arte de dialogar» que implica, na linha de Levinas, a abertura ao outro, a compreensão e o alargamento de horizontes.