É sabido que de país vocacionado que foi para a emigração Portugal se tornou destino de imigração. Não pretendo ocupar-me dos factores de ambas as situações, que são conhecidos, nem pronunciar-me sobre as vantagens ou inconvenientes da presença de estrangeiros entre nós, cuja percentagem rondará hoje, se estou certo, os 5% da população residente. Desejo apenas referir-me a um aspecto da sua integração na sociedade, qual é o respeitante à língua.
Sendo a maioria desses 5% de não Portugueses constituída por brasileiros e africanos oriundos dos Palop, nenhuma ou pouca relevância oferece para os seus membros a integração linguística, já que aqueles têm o português como língua primeira e estes, quando a não têm também como tal, a têm ao menos como língua segunda. Diferente é o caso dos restantes, nomeadamente dos provenientes do leste europeu, cujo número é elevado mas que as exigências do exercício de actividades profissionais ou outras geralmente levam a aprender o suficiente da língua para a entenderem e nela se exprimirem de maneira satisfatória. O que maior preocupação parece vir causando respeita à escolarização dos seus filhos.
Inspirado talvez num «relatório de iniciativa» submetido ao Parlamento Europeu, que o aprovou, ou dele irmão, anunciou há dias um partido político (reporto-me a uma notícia do Público de 4 de Janeiro) uma proposta no sentido de se criarem, nas escolas do 1.º Ciclo com significativa presença de falantes de idiomas estrangeiros, turmas onde o ensino fosse assegurado por dois professores, de modo que as crianças aprendessem na sua língua própria e em português. Para evitar a «guetização» dos imigrados tais turmas contariam com 30% de portugueses.
Tratar-se-ia, para usar expressão hoje em voga em França, de uma forma de «discriminação positiva» cuja constitucionalidade, embora me deixe dúvidas (artigos 13.º, 2 e 15.º, 1 da Constituição da República Portuguesa), me não compete apreciar. Limito-me a registar, a propósito, que os 30% de alunos portugueses se veriam então submetidos à obrigatoriedade de estudar em língua que não seria a sua, o que representaria «discriminação negativa» absolutamente intolerável, com a agravante de, enquanto os estrangeiros vivem ou podem viver em ambiente linguístico português, eles não viverem no ambiente da língua estrangeira. Mais: coexistindo numa mesma turma imigrados de diferentes origens, tornar-se-iam necessários não dois professores, mas tantos quantos os idiomas nelas representados. Seria a Babel, a menos que se organizassem turmas por nacionalidades, o que promoveria a efectiva guetização, e conseguiria ser pior que a «TLEBS»!
Contra o teor da proposta acrescem argumentos de outra natureza.
Numa primeira ordem de ideias, convirá reflectir sobre o conceito que se tem de imigração e o que se espera dos imigrados. Em perspectiva materialista, entende-se a imigração como um mal necessário e os imigrados como força de trabalho que se descarta quando deixa de ser necessária. Em perspectiva humanística, a imigração constitui fonte de enriquecimento cultural e humano e os imigrados são pessoas como as que os acolhem, com tudo que sê-lo implica de bom e de menos bom. E acolhê-los quer dizer integrá-los na sociedade como pessoas, não quer dizer usar indivíduos enquanto e porque são úteis.
Ora, a integração numa comunidade social faz-se, em primeiro lugar, pela partilha da língua. Os turistas em visita a países cujo idioma não entendem nem falam podem apreciar os monumentos, as ruas, a alimentação, alguns hábitos, mas não ficam a entender verdadeiramente o país nem a respectiva cultura. Conheço portugueses que passaram anos num país estrangeiro sem nunca falarem a língua local, o que é fácil acontecer onde existem comunidades lusíadas de considerável dimensão, e por isso dele nada apreenderam e ainda hoje nada sabem. Tenho tido, pelo contrário, a experiência de alunos que vêm para Portugal ou vão para o estrangeiro ao abrigo de programas de mobilidade como o Erasmus e cuja primeira preocupação é a de se familiarizarem com a língua do país, o que lhes tem aberto muitas portas.
Direi por isso entre parêntese que nunca me seduziu a ideia de o ensino proporcionado pelas Universidades no âmbito de tais programas se ministrar em língua outra que a do país de acolhimento, nomeadamente em inglês, a pretexto da universalidade do conhecimento. A mobilidade estudantil não visará apenas a aquisição de saberes científicos ou técnicos, mas também e sobretudo o enriquecimento de experiências culturais, no sentido antropológico do termo, que passam pela apropriação de instrumentos linguísticos. Foi com esse propósito que se criaram e mantêm condições para a existência de tais programas e é assim que eles devem funcionar.
A integração dos filhos dos imigrados na sociedade portuguesa depende, em primeiro lugar, do domínio que obtiverem do instrumento de comunicação privilegiado que a língua constitui. Todos sabemos, aliás, quão fácil é para uma criança adquirir uma língua estrangeira, desde que inserida na comunidade que a fala: adquire-a do mesmo modo que, como qualquer um, adquiriu a sua. O que importa, portanto, não é segregá-la nem distanciá-la do meio, é que disponha de condições de convívio com quem a fala, o que não será, claro, o caso se viver em esferas por natureza isolacionistas, conforme infelizmente muitas vezes sucede em certos bairros periféricos das grandes cidades. Esse não é, contudo, problema que a escola possa resolver ou a que possa sobrepor-se: a escola pode, sim, e deve ensinar português aos imigrados e, acrescente-se já agora, também aos autóctones, mas não em língua que, em Portugal, não seja a portuguesa. Não imagino aliás instituições escolares, por exemplo britânicas, leccionando em inguche, flamengo, romeno ou mesmo português.
Aquela é, de resto, a secular tradição do nosso País.
Com efeito, logo nos inícios do século XVI, conta Diogo do Couto, enviava D. Manuel I para África e Oriente «mestres de ler e escrever» com a missão de lá abrirem «escolas onde instruíssem meninos», e com eles seguiam igualmente milhares não só de catecismos, mas também de livros de leitura. Na linha do Marquês de Pombal, que impôs o uso do português no Brasil, imposição aliás desnecessária pois ele já se encontrava aí generalizado ao tempo do Padre António Vieira, determinou o general Norton de Matos, quando alto-comissário da República em Angola, por decreto de 9 de Dezembro de 1921, que as missões religiosas se obrigariam a ensinar a língua portuguesa e não poderiam ensinar nenhuma outra nem em nenhuma outra. Idênticos foram o procedimento do governador-geral de Moçambique em diplomas de 3 de Agosto de 1929 e o teor do Estatuto Missionário, de 5 de Abril de 1941. E não se tratou de qualquer «excepção» portuguesa, pois esta política linguística coincidiu com a da França nos seus espaços extra-europeus. Não ignoro que a tais directrizes subjaziam uma concepção de soberania e orientações políticas, ideológicas se se quiser. Contrariá-la não corresponderia menos, porém, a outras orientações, também políticas e porventura mais ideológicas, mas de sinal contrário.
**in "Jornal de Letras" de 17 de Janeiro de 2007