Língua Portuguesa - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Língua Portuguesa

Antigamente, não vinham apenas roupas, brinquedos, ferramentas e espantos nas grandes caixas de madeira que cruzavam os mares e os ventos, entre a América e as ilhas dos Açores. Vinham também os cheiros, os prodígios da riqueza imaginada, as inscrições a negro sobre a madeira aconchegada pela firmeza das cintas metálicas. E vinham palavras novas. Embrulhados com as roupas, chegavam dizeres, bilhetes com erros de ortografia, cartas movidas por estranhas palavras que em si mesmas misturavam duas línguas: aludiam a coisas e loisas desconhecidas, a geografias que não estavam no mapa, a «mechins» e modos de vida que não haviam entrado ainda na nossa educação. Eu ouvia, olhava essas palavras, sentia nelas o mesmo perfume das roupas embrulhadas na naftalina, vindas nas grandes «boxes» que aportavam à doca de Ponta Delgada. Elas saíam de dentro de navios longos, altos e profundos; eram erguidas por guindastes que rangiam por cima da cidade; vinham pousar no cais, fechadas nos contentores, e ali permaneciam esquecidas, até que viesse um camião fretado pela companhia de transportes marítimos e as levasse para o outro lado da ilha.

Não raro, essas novas palavras eram descarregadas à beira da estrada nacional, ao cimo da freguesia, onde os homens iam esperá-las com um carro de bois. Tomando-as em peso, os braços carregavam com elas os carros; depois elas desciam a Rua Direita, chiando nos eixos de vinhático e ardendo em solene, vagaroso e doce canto. Um grande e respeitoso silêncio se erguia, então, à passagem dos carros. Quando chegavam ao adro da igreja, marulhava logo por ali um tropel de passos: eram homens de botins, e mulheres de tamancos de acácia, e crianças descalças, rotas e seminuas que arrastavam os suspensórios caídos das calças, como se tivessem cauda. Começava aí o único e numeroso alarido, de quando a pobreza era ruidosa e mesquinha na disputa dos seus queridos tesouros americanos.

Eu ficava de lado, a ver e a ouvir, a adivinhar o que ali ia passar-se. Já alguém chamara o «senhor padre», para que viesse assistir à abertura da enorme «box» cheia de roupa americana. Davam-lhe uma imponente cadeira eclesiástica, e ele cruzava os braços no peito, cheio de uma súbita autoridade que nele simbolizava a ordem e a moralidade. O vento sacudia as abas da sua batina lustrosa, despenteava-lhe os cabelos ensebados. Quando, finalmente, ele ordenava que abrissem a caixa, um suspiro de ansiedade passava no peito das mulheres. Empunhando uma barra de ferro, e com ela fazendo de gazua ou pé-de-cabra, um homem forçava as cintas metálicas, as dobradiças, os pregos das tábuas. Saía, como de esguicho, uma nuvem de naftalina que se espalhava pelo adro e parecia enlouquecer as pessoas. As mulheres precipitavam-se para a frente, enervadas e ansiosas, e ralhavam com as suas crianças. Daí a pouco, aberta a grande caixa americana, o homem perguntava ao padre se lhe dava licença para começar a distribuição das encomendas. E sua reverência dignava-se dizer que sim com a cabeça.

Pouco me importava com o que a cada um calhasse daquele tesouro marítimo, vindo no bojo dos grandes navios brancos de então. Dos outros eram o orgulho e o cheiro a naftalina. Para mim, que nunca esperei peças de roupa nem outras prendas das terras da América, vinham apenas nomes, palavras, mitologias primitivas, imagens de gente e de palavras que pairavam já como um sinal, uma necessidade, um desejo de literatura. Se outros recebiam calças, peúgos, camisetas, camisolas de lã e samarras, eu contentava-me com nomes e corruptelas inglesas: «alvaroses», «soquetes», «sueras», «tishartes» e roupas de «nailon» — um troféu invisível que era como que o totem da tribo ou o valor totémico da palavra dita ou escrita.

Quando à ilha chegavam, de férias ou para ali ficarem de vez, os «amaricanos», fascinava-me ficar a ouvi-los falar do triunfo e da glória, das epopeias e da riqueza, das desgraças e dos heroísmos que lhes tinham acontecido nas terras de Deus — que eram, já então, as terras da América. Mais do que o assombro de saber que haviam vencido o gelo e as solidões de uma língua desconhecida, a mim cativava-me aquele discurso cheio de palavras incompreensíveis, que já não eram inglês nem português, mas sim uma terceira via linguística que resultava em erupção e em cruzamento de uma cidadania dupla e de uma nova civilização. Além disso, tratava-se de grandes contadores de casos; melhor do que ninguém, sabiam fazer as breves ou longas pausas com que se deve dosear a emoção de quem ouve; quando metiam frases inglesas no meio das suas narrativas, emprestavam a nobreza do grande realismo tanto à ideia como à situação. Faziam-no com a mesma naturalidade com que iam bebendo a sua «bia», em vez da cerveja preta dos Açores; e também de quando, quase bêbedos, erguiam a voz, arrastavam frases solenes ou simplesmente insultavam o mundo em abstracto, dizendo: «sonavagane», «sonavabiche», «fóquiu»...

A avó Deolinda foi decerto a mais sábia e mais canónica contadora de histórias que jamais ouvi. Narrava tragédias, mistérios, casos que metiam anjos-da-guarda, almas do outro mundo, o Diabo à solta junto aos portões do cemitério, gente possessa, os segredos todos dos mortos. Mas contava com a tal função de pausa, com a ironia e o humor comedido de quem parece tomar partido pelo bem ou pelos males do mundo; a tal ponto que nós, os que a ouvíamos, impacientes com a demora, perguntávamos: «Vavó! E depois? O que foi que aconteceu a seguir?»

Fiz-me escritor, em parte para tentar imitar a narrativa sábia, encantada e prosódica da avó Deolinda. Aprendi a sê-lo também com os emigrantes açorianos da minha infância, cuja oralidade se sublimou em mim, tanto como o imaginário, a magia e a linguagem dos meus mestres em literatura: Eça de Queiroz, Luís de Camões, Gabriel García Márquez, Feodor Dostoievski, Fernão Mendes Pinto, Franz Kafka, Albert Camus, Tomasi di Lampedusa, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Antonio Tabucchi, e dizem que também Juan Rulfo e William Faulkner (ainda que eu em tal não acredite...)

Da mesma forma que às casas de uns chegavam roupas e brinquedos americanos, às mãos de outros eram entregues cartas debruadas a azul e vermelho, as cores da bandeira americana. Umas vezes, tratava-se de cartas de chamada, que espalhavam pelas ruas o tal alarido de alegria e loucura; outras, cartas de pranto, cheias de saudades e lamentações, que os destinatários, sendo analfabetos, me pediam que lhes lesse. Ora, eu lia os factos e os sentimentos das cartas, ouvia as vozes distantes de quem as escrevera - mas muito mais me enchiam a alma as palavras corrompidas daquela escrita sentimental que se queixava dos rigores do frio, da maldição do «sinó» e dos trabalhos na construção daqueles estranhos e inexplicáveis caminhos-de-ferro, por onde haviam de passar os «treines» (que minha mãe traduzia, simplesmente, por «carros-de-fogo»).

É certo que demorei anos a saber o que era isso de «treines» e de «sinó», numa ilha onde não havia comboios nem constava que nevasse. Um dia, na minha infância, desembarquei no país dos castelos, dos rios e das vias férreas portuguesas, no país que eu estudara nos compêndios de História e Geografia, muito diferente daquela ilha que nunca teve rios, nem castelos, nem vias férreas. Assim também, muitos anos mais tarde, vim a saber que a televisão se chamava «telaveija», um frigorífico era uma «friza», o metropolitano era um «sabuei», um subsídio de desemprego dava pelo nome de «compasseixa», as pessoas estavam sempre cobertas pela «insurança» (seguro de acidentes de trabalho), pela «welfare» (previdência social), pelas «uniões» (sindicatos); e soube também, com a evidência necessária, que a casa não era casa, mas sim «home» ou «house» — com um «beisement», um «livingue», uma «fensa» e um «gardene»; que os grandes edifícios urbanos se chamavam «bildingues»; que a «baixa» das cidades era a «downtown»; que tanto podia apanhar o «metro» como o «subway» - assim como podia ir ao «store» ou à «estoa», ao «safuei» ou ao «coffee-shop».

Referindo-se à América Latina e ao realismo fantástico da Literatura latino-americana, o genial escritor argentino Julio Cortázar disse, muito a propósito: uma casa não é uma casa, uma rua não é uma rua, nada é igual a nada; tudo pode ser natural e excepcional. Ou seja: da mesma forma que eu, um dia, compreendi que em África uma «aldeia» se chamava «quimbo» ou «sanzala» e a uma «casa» se dava o nome de «cubata», percebo que a um veículo que roda sobre carris se pode chamar «train» (em francês), «train» (em inglês), «trem» ou «bota-fogo» em brasileiro, «comboio» em português do continente e «carro-de-fogo» nos Açores. Por uma muito idêntica lógica significativa, o antigo «boieiro» das ilhas pode muito bem ser, hoje em dia, o novo «cowboy» da América. A razão que levou os índios americanos a tratar o homem branco por «rosto pálido» não constitui, em si mesma, uma ordem ou uma orgânica literária. O realismo da literatura está todo na sua dupla capacidade de designar e de sublimar a realidade. Percebi isso por mim, na minha própria vida. De alguma forma, tudo aquilo que vivi foi uma escrita anterior ou uma pré-escrita de literatura; e aquilo que fui escrevendo acabou por constituir-se na síntese, na memória e na pouca sabedoria da minha vida. Sobretudo, parece-me claro que nenhum escritor chega à compreensão do tempo, do lugar e da pessoa, sem primeiro entender e assimilar a sua linguagem. E na medida em que todos escrevemos e somos escritos, vivemos e somos vividos, nascemos e somos nados, morremos e somos mortos, assim também somos produtores e produto de linguagem. A Língua pode muito bem ser uma pátria, como escreveu Fernando Pessoa, porque como pátria se ganha, se perde, se adopta ou repudia. Mas, antes de pátria, a Língua é sempre algo de mais íntimo: padrão e medida da nossa alma; referência da nossa arte; corpo, espírito, palavra e «Casa do Ser» — na expressão do Hölderlin e de Heidegger; ou como no poema, sob o mesmo título, de Vitorino Nemésio: «Língua, Casa do Ser que lá não mora, / E, se chama, não está por morador, / Que só em nós o verbo se demora / Como sombra de sol e eco de amor. // Abrigo sim, porém sem tecto, fora / De torre e porta, os muros no interior: / Assim a Casa essente rompe à aurora / Para se incendiar com o sol-pôr.»

Tenho, pois, uma Língua pessoal, antes de ser colectiva; aprendida no tempo e na medida da minha vida — e amada como o único território interior que ainda me pode levar à atitude e à sagração da minha identidade. Nela forjei também a cidadania, a consciência e a imaginação da minha portugalidade. Por isso, não compreendo a teoria do império da Língua, nem aceito que a gramática seja o centro do mundo. A Língua Portuguesa deve entrar no desafio da sua universalidade. Mas para vencer esse desígnio, não pode sentir-se ofendida com aquilo que nomeia por «estrangeirismos» e que rejeita como uma espécie de lepra do espírito. Libertemos a fonética e a semântica. Nenhuma unificação ortográfica se oporá à multiplicação do léxico. A única grandeza está nesta diversidade de ver e ouvir, na mesma língua, uma doçura brasileira, um verbo africano mal conjugado, um ditongo mais ou menos afrancesado numa ilha dos Açores, uma corruptela inglesa, francesa ou outra na boca de um emigrante americano, canadiano ou europeu. E que viva a grande comunidade da Língua Portuguesa!

Fonte

Texto incluído no "Dicionário de Paixões", Publicações D. Quixote, Lisboa.

Sobre o autor

João de Melo (Achadinha, Ilha de São Miguel (Açores), 1949) é um escritor português. Licenciou-se em Filologia Românica. Publicou o seu primeiro conto no jornal Diário Popular aos dezoito anos. É autor de inúmeras obras tendo sido galardoado com imensos prémios dos quais se destacam o Prémio Dinis da Luz, com o romance O Meu Mundo não é deste Reino, o Prémio Associação Cultural, com contos Entre Pássaro e Anjo e o Grande Prémio do Romance e Novela da A.P.E, com o romance Gente Feliz com Lágrimas. Recebeu ainda o Prémio Eça de Queirós da Cidade de Lisboa, o Prémio Cristóbal Colón das Cidades Capitais Ibero-Americanas (Lima, Peru) e o Prémio Fernando Namora (Prémio Antena 1 de Literatura).