«(...) «[A] expansão internacional da língua portuguesa deveria ser um dos objetivos estratégicos e um dos temas em relação aos quais todos os países que usam essa língua como sua precisam urgente e definitivamente de se entenderem. (...).»
O tema das relações entre os denominados países de língua portuguesa, em todas as áreas, é habitualmente tratado com muitas paixões, mas também equívocos, preconceitos e uma total ausência de uma estratégia comum, pensada e definida por todos, em pé de igualdade.
Parece que, quando os diferentes atores se sentam à mesa para discutir, cada um, além das ideias colocadas em cima da mesma, guarda no bolso outras ideias, refletindo ciosa e egoisticamente os seus ocultos interesses particulares.
Lapalisse di-lo-ia: isso explica-se, desde logo, pelo facto de tais relações terem sido forjadas, historicamente, com base numa relação que começou por ser de profunda desigualdade, entre colonizador e colonizados, cujos efeitos, sobretudo psicológicos, mas não só, se arrastam até hoje.
Não escapam a tal contingência sequer as relações entre Portugal e o Brasil, mau grado este país ter recebido a independência das mãos de um soberano português, ao contrário dos países africanos de língua portuguesa, que tiveram de lutar de armas na mão para a obter. Mas a contradição não é exclusiva. O mesmo acontece também entre a Espanha e as suas antigas colónias na América Latina, onde as elites dominantes são, na sua esmagadora maioria, e como as brasileiras, herdeiras dos antigos colonizadores.
Recordo, aqui, o comentário do já falecido professor brasileiro Fernando Mourão [1934-2017], grande conhecedor das relações Portugal-Brasil-África, segundo o qual as incongruências e hesitações das relações entre os dois primeiros países se devem também a outro fator: a influência da imigração internacional (não-portuguesa) no Brasil. Para ele, basta olhar os apelidos de numerosos intelectuais e empresários brasileiros para entendê-lo.
Quanto às ambiguidades, para não dizer dificuldades, do relacionamento entre Portugal e as suas antigas colónias africanas, são explicadas também pelo facto de estas últimas terem conquistado a sua independência muito mais recentemente e, por culpa da burrice histórica do ditador português António Salazar, nas condições que todos conhecemos.
Como resultado desses e outros fatores, deparamo-nos regularmente, a propósito deste assunto – as relações entre os países de língua portuguesa –, com uma série de complexos de todo o tipo (superioridade, inferioridade, etc.), equívocos, falsos problemas e ausência de visão.
Apenas para dar três exemplos, cito os departamentos de "estudos portugueses, brasileiros e lusófonos" em algumas universidades lusitanas, como se os "lusófonos" fossem os "outros"; os pruridos de alguns intelectuais dos países africanos de língua portuguesa, segundo os quais "nós somos bantuófonos e não lusófonos", quando na verdade somos as duas coisas (aliás, a própria língua portuguesa foi e continua a ser influenciada e transformada pelo seu contacto histórico com certas línguas bantu); e a persistente confusão em torno do acordo ortográfico da língua portuguesa.
Para mim, essa confusão é o exemplo acabado daquilo que é um falso problema. Tenho, por isso, uma grande dificuldade em entender as paixões, os equívocos, os mitos e as falsidades que o seu interminável debate tem suscitado.
Talvez em outra ocasião partilhe neste espaço as minhas ideias gerais sobre o acordo ortográfico. Por enquanto, quero apenas referir que a expansão internacional da língua portuguesa deveria ser um dos objetivos estratégicos e um dos temas em relação aos quais todos os países que usam essa língua como sua precisam urgente e definitivamente de se entenderem. Parece-me óbvio que a vigência de um acordo desse tipo pode contribuir para esse objetivo.
Sei perfeitamente, inclusive pela minha vivência pessoal, que não existe apenas uma lusofonia, mas várias. Grafar as palavras da mesma maneira, entretanto, não impede a expressão dessa diversidade: consolida-a e expande-a, na medida em que elimina uma barreira convencional à circulação escrita da língua, facilitando o conhecimento mútuo das suas diferentes manifestações expressivas, uma vez que escrever é muito mais do que simplesmente grafar as palavras.
Texto de opinião que o jornalista e escritor angolano João Melo publicou em 15 de fevereiro de 2020 no Diário de Notícias.