Críticas de D'Silvas Filho ao "Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa" (VOC), elaborado no âmbito das competências atribuídas ao Instituto Internacional da Língua Portuguesa – e cujos critérios se encontram condensados no texto "O modelo, as características e como está a ser desenvolvido o Vocabulário Comum da Língua Portuguesa" (da autoria da linguista Margarita Correia, que o leu na apresentação pública da plataforma do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, em Lisboa, no dia 19 de fevereiro de 2015).
1. Introdução
O autor alonga-se neste assunto, porque o VOC é verdadeiramente a base de justificação para o Acordo de 1990. Sem VOC, não há língua comum; e, sem língua comum, não há justificação para, no português europeu, termos deixado a coerente norma de 1945, elaborada sob a batuta do insigne Rebelo Gonçalves.
2. Preâmbulo do AO90
O Preâmbulo do Acordo de 1990 prescrevia:
Artigo 2.º, «Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas».
Artigo 3.º «O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor em 1 de Janeiro de 1994, .....»
2.1 Condições para se realizar o AO90
Condição a)
Assim, estava prescrito que antes de o AO90 entrar em vigor devia haver um Vocabulário Comum a ser elaborado em dois anos e que depois teríamos ainda mais um ano para adaptação.
Condição b)
Por outro lado, a Nota Explicativa no último parágrafo do 4.4 indica:
“Os dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia”, esclarecerão, tanto quanto possível, os alcances geográficos e sociais das oscilações de pronúncia.
2.2. Conclusão que se tira de a) e b)
Para se poder dizer que teríamos uma única língua portuguesa, atendendo ao objetivo de unificação, as condições a) e b) atestam que essa unificação só estaria realizada quando tivéssemos um dicionário comum, que servisse de consulta em toda a lusofonia. Ora, para se conseguir esse dicionário comum, é óbvio que seria indispensável haver previamente um VOC e «tão completo quanto desejável».
3. O procedimento que seria correto
Podemos, portanto, idealizar como os objetivos do Preâmbulo poderiam ter sido bem conseguidos:
• Na elaboração de um VOC para os países signatários, todos os países enviariam rapidamente, para a comissão de estudo, os vocabulários que tinham em uso antes do AO90. Esta comissão seria formada por linguistas idóneos e conteria elementos que conceberam o AO90.
• Nos dois anos disponíveis, a comissão do VOC faria então uma seleção das palavras consideradas comuns e adaptá-las-ia ao Novo Acordo. No espírito do AO90, por exemplo, segundo a Nota Explicativa, no 4.1, só se eliminariam as consoantes que não fossem articuladas “em todo o universo da língua”, ponderando, mesmo assim, caso a caso, os inconvenientes dessa eliminação.
Verificava-se logo, nesse trabalho de conjunto, que, por exemplo, não se justificavam algumas das duplas grafias previstas no texto do AO90, como concepção/conceção, pois o p nesta palavra não é universalmente mudo. O VOC só teria concepção. O mesmo se passaria em muitos casos semelhantes.
O critério fonético seria relativo e só se aplicaria em pleno quando a consoante fosse universalmente articulada. Um critério etimológico seguido no VOC tenderia a unificar.
• Na união desses vocabulários nacionais (VON) específicos, procurar-se-ia também uniformizar discordâncias, evitando ao máximo múltiplas grafias para as mesmas acepções. Por exemplo, desde que não se violentassem muito os hábitos adquiridos, tentar-se-ia que houvesse uma só grafia nas versões respetivamente em Portugal e no Brasil tais como: comummente/comumente; hífenes/hifens; dólmenes/dolmens; quezília/quizília; dissemelhança/dessemelhança; húmido/ úmido; piza/pizza; uréter/ureter; etc.
Nos casos em que essa uniformização não fosse de todo possível, aceitar-se-iam duplas grafias, como em facto/fato, amnistia/anistia, connosco/conosco. Estas duplas só se recomendariam num mesmo país se nele houvesse oscilação sensível de pronúncia e de uso gráfico como, em Portugal: sector/setor (mas preferencial a forma etimológica para abertura da vogal).
A língua portuguesa teria, assim, o seu símbolo universal nesse VOC, um léxico meramente gráfico (se contivesse pronúncias já não era válido em tudo para todos), considerado então efetivamente comum, perfeito para a comunicação interpaíses da lusofonia ou para as comunicações internacionais.
• Durante o terceiro ano previsto no Preâmbulo, em cada um dos países, os respetivos vocabulários seriam reformulados de acordo com o VOC, mas também de acordo com as suas especificidades. Não faz sentido, por exemplo, que no VOC estivesse a multitude de termos da fauna e da flora brasileira.
Sem considerar ilegítimas as duplas grafias do VOC, cada país escolheria a variante mais conveniente, e normalmente só essa, para evitar confusões. Por exemplo, em Portugal: facto, amnistia, connosco.
• O AO90 entraria em vigor em cada um dos países, após estar concluído o seu VON para o AO90.
• A comissão do VOP, ou outra, procederia posteriormente à elaboração dos dicionários da língua portuguesa almejados na Nota Explicativa. Poderia ser só o referente ao VOC; ou ser uma obra completa, incluindo todas as especificidades.
Nesses dicionários da língua portuguesa, poderiam então indicar-se «os alcances geográficos e sociais das oscilações de pronúncia», como se refere na Nota Explicativa. Por exemplo, neles e na entrada concepção estaria indicado: para Portugal a pronúncia [kõsεsɐ̃w] e para o Brasil [kõsεpsɐ̃w].
Ora, foi isto que se fez? Não.
De facto, o tempo era curto para um empreendimento tão premente em recolha de dados e muito laborioso na conciliação de medidas da união na língua, tudo a fazer em dois anos. Era também de prever que nem todos os países conseguissem o seu vocabulário específico no ano seguinte. Os autores do texto não foram realistas nos prazos dados.
Só que o tempo não foi considerado só escasso, ...foi-se deixando passar anos sucessivos sem nada se fazer....
4. Histórico depois da assinatura do AO90
A certa altura, ficou-se a contar já com as calendas gregas para o aparecimento do VOC. Também porque não havia consenso sobre a bondade do Acordo, os responsáveis consideraram, em Portugal, que o AO90 estava muito bem assim, a jazer na gaveta. Onde esteve quase 20 anos...
Até que em Colóquios da Lusofonia a que o autor assistiu anos antes de 2009, notava-se da parte da Academia Brasileira de Letras (ABL), na pessoa do Professor Evanildo Bechara, o desejo de avançar com um Vocabulário brasileiro para o AO90.
Louvando esta iniciativa e também o facto de os brasileiros presentes continuarem a desejar que a sua língua se designasse por portuguesa, o autor pediu só que o Brasil não pusesse muito rapidamente o Acordo em vigor, tanto mais que não havia VOC e não havia hipótese de se conseguir a curto prazo um qualquer vocabulário português para poder acompanhar o Brasil na sua decisão.
Mas este pedido não foi satisfeito. A Academia Brasileira de Letras avançou em 2009 com um monumental vocabulário para o AO90 (o VOLP, com 350 000 entradas). Simultaneamente, o Governo brasileiro estabeleceu a aplicação rápida do AO90 no ensino logo para 2010 e decretou que ficaria oficialmente em vigor no país dois anos depois.
A desculpa do Brasil, sem bases sérias (pois o AO90 exigia sempre que houvesse antes um VOC, qualquer que ele fosse), era que o VOC citado no Preâmbulo se destinava só às terminologias científicas e técnicas e não fazia falta na língua comum. A interpretação feita pelo Brasil baseava-se na existência de vírgulas que são controversas (assinaladas mais fortes a negrito em 2, no texto do 2.º do Preâmbulo). Sem essas duas vírgulas, o texto teria outra interpretação, e, com uma vírgula depois de “desejável”, ficaria bem clara a ideia que o autor sempre defendeu: “um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa tão completo quanto desejável, e tão normalizador quanto possível no que se refere às terminologias científicas e técnicas”. Ou seja, um vocabulário cumprindo com a e b de 2.1.
A iniciativa do Brasil (que deu logo disparate na discrepância entre o VOLP e algumas publicações para o ensino no Brasil) perturbou grandemente os responsáveis portugueses. Alguns quiseram aplicar imediatamente o AO90 quando saiu o VOLP, sem sequer haver ainda um vocabulário para o AO90 em Portugal. Num artigo publicado em Ciberdúvidas, o autor recomendou prudência e pediu que, ao menos, se esperasse pela existência desse Vocabulário português.
Então, a confusão instalou-se: apareceram dicionários para o AO90 com erros flagrantes, vocabulários controversos, etc. Nos primeiros dicionários para o AO90 o critério fonético era relativo, mas implantou-se subitamente a ideia de que seria não só preferencial, mas completamente dominante; e, então surgiu o princípio abstruso de aplicar o simplificacionismo abusivo de eliminar todas as consoantes que em Portugal não fossem articuladas. Abusivo, porque o b) do 1.º da Base IV não o prescreve, e a Nota Explicativa esclarece que, como dissemos, só é exigida a supressão quando a consoante for muda no universo da Língua. Assim, a já citada atrás concepção convertida em *conceção é o resultado desse princípio abusivo, contrariando o espírito do AO90.
Finalmente, o ILTEC obteve o encargo de fazer um vocabulário destinado ao AO90 (o VOP). Este VOP do ILTEC foi (e é) um amplo trabalho, e o melhor que em Portugal se fez para o AO90 até à data. Aceitou ter por base o idóneo Vocabulário de Rebelo Gonçalves estruturado na Norma de 1945 e teve a sensatez de não registar muitos dos mamarrachos que aparecem noutros vocabulários, nomeadamente palavras iniciadas por st, que nunca existiram na língua.
Contudo, como todos os outros, acabou por ser subserviente do critério fonético abusivo, na supressão de todas as consoantes não articuladas, que nesta data ainda considera condição de base (Critérios de Aplicação [do AO90]). Teima, também como todos, em interpretações controversas quanto aos hífenes, em desacordo com os critérios sensatos estabelecidos na Norma de 1945.
Ora, foi este VOP o vocabulário imposto para a implementação do AO90 nas escolas e na Administração do Estado, segundo a autocrática Resolução do Conselho de Ministros 8/2011. Sem uma prévia discussão ponderada entre professores, académicos, escritores, editoras e demais pessoas idóneas no conhecimento da língua.
5. O VOC finalmente realizado
Já a aplicação do AO90 ia avançada, sem haver nenhum VOC unificador, quando, em reuniões entre a Sociedade da Língua Portuguesa e a CPLP, o autor, como membro do C. Científico da SLP, foi solicitando a intervenção da CPLP para a realização do VOC, também como missão que a instituição tinha de agregadora na língua portuguesa, ...senão essa união na língua dificilmente se realizaria com o AO90.
CPLP que acabou, em boa hora, por se interessar a fundo pela realização do VOC imposto no Preâmbulo do AO90. Conseguiu, finalmente, elaborar tal trabalho, com o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP). Nos estudos, foi determinante que se realizassem vocabulários de países que não os tinham. Para Portugal, presume-se que a base de orientação terá sido o VOP do ILTEC e para o Brasil o VOLP da Academia Brasileira de Letras.
6. Mas um VOC controverso
Ora, quando o trabalho foi finalmente concluído e apresentado ao público, com informação de estar acessível em linha, o autor foi surpreendido por haver mais que um VOC (uma bandeira para cada país da lusofonia)... Repare-se que em todas as referências acima ao texto do AO90 sobre o VOC o autor foi sublinhando sempre a palavra um, não vários VOC.
A conclusão que se tirava era que a comissão de estudo decidira incluir, no VOC de cada país, ressalvas específicas, por país, sobre vocábulos que não tinham sido propostos por esse país para o VOC ou que eram específicos de outros países. Ora, esta decisão desvirtuou o objetivo de se ter um VOComum, convertendo, afinal, em parte, cada um dos VOC em VOC nacionais específicos...
Esta incongruência não pode ser atribuída só aos obreiros do VOC, mas ao facto, também, de se sentirem obrigados a obedecer a um critério fonético estabelecido como taxativo nas consoantes não articuladas.
Um VOC, para ser comum, deveria ser só gráfico, permitindo mais que uma prosódia em cada entrada. Considerando o VOC as pronúncias praticadas nos países, nas suas variantes específicas, conduziu a vários VOC, em oposição frontal ao que está prescrito no Preâmbulo do AO90, que indicava um só. Na sanha que encontraram contra as consoantes não articuladas, apresenta ainda o inconveniente de registar muitas novas palavras inventadas e, assim, estranhamente, converte-se até num paradoxo quanto à unificação pretendida.
7. Conclusões
O autor louva o trabalho feito no VOC mas não o considera lei na língua em Portugal.
Contrariamente ao espírito expresso no Preâmbulo do AO90, num VOC país a país, como está em linha, continuaremos a ter o VOC português, o VOC brasileiro, etc.; ou, por outras palavras, continuaremos a ter o português europeu, o português brasileiro, não `um vocabulário comum da língua portuguesa´, no qual são legítimas no universo da língua todas as entradas. Um VOC que consagra o critério fonético divide, em vez de unir.
O VOC realizado não deixa, contudo, além de outros já apontados, de ter o inegável mérito de se apresentar como primeiro símbolo duma língua portuguesa universal. Não deve, por isso, ser menosprezado. Os trabalhos que estão em curso em Portugal para aperfeiçoamento do AO90 poderão contribuir, também, para se ter depois um VOC finalmente unitário e mais perfeito.
E falta no VOC conseguir-se um acordo na supressão de duplas grafias talvez desnecessárias, como se apontou em 3. Claro, sem esquecer as peculiaridades de cada país, como também apontámos em 3. A propósito, lembremos que na Declaração do Conselho de Ministros da CPLP, no Plano de Ação de Brasília para a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, lê-se: «Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos contextos de utilização da língua, em particular nos sistemas educativos».
Assim, na aplicação do AO90 e mesmo com um VOC de união mais perfeito, temos perfeitamente o direito de adotar em Portugal as escolhas que melhor defendam o português europeu. Todos os países têm esse poder soberano.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico