D´Silvas Filho argumenta que a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 não depende da prévia publicação de um vocabulário comum, que não deixa de ser necessário e urgente. Artigo disponível na página pessoal do autor.
1. Definição de Vocabulário Comum. Necessidade. Realização
No seu sentido mais abrangente, entende-se por Vocabulário Comum um vocabulário combinado entre os signatários do Acordo Ortográfico de 1990 (novo AO) que permita elaborar um Dicionário Comum Global da língua portuguesa (válido em toda a lusofonia). Critério de dicionário global, aliás, seguido, por exemplo, na francofonia e na hispanofonia.
Estes dicionários globais estão previstos no 4.4 do Anexo II do novo AO:
«Os dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia, esclarecerão, tanto quanto possível, sobre o alcance geográfico e social desta alteração de pronúncia.»
Os dicionários globais da língua comum incluem, portanto, todas as variantes (por exemplo topónimo/topônimo), o que não fazem nem o vocabulário para o novo AO da Academia Brasileira de Letras (VOLP PB da ABL), nem o vocabulário também para o novo AO já publicado pela Porto Editora, destinado este ao português europeu (VOLP PE da Editora).
O Vocabulário Comum tem de ser combinado pelos signatários:
a) Para se conseguir alguma unidade mais na língua. Por exemplo, decidir se no Dicionário Comum passa a existir só comumente ou só comummente e não as duas variantes; existir hífenes ou hífens; escuteiro ou escoteiro com o mesmo significado; etc.
b) Porque a língua portuguesa é propriedade de todos os países que a têm como língua oficial, e qualquer alteração ao que foi acordado exige novo acordo.
2. Pretexto de oposição ao novo AO, porque falta o Vocabulário
Os opositores argumentam que o novo AO não pode ser posto em vigor enquanto não existir um Vocabulário Comum que obrigue todos os signatários. Consideram como pretexto o Artigo 2.º do Preâmbulo do Acordo de 1990 (o itálico é meu):
«Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 da Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.
A redacção permite efectivamente dissociar o que está por mim escrito em itálico do restante.
É unicamente a vírgula depois de «possível», no texto, que permite o argumento de que todo este artigo 2.º se refere só às terminologias científicas e técnicas.
No entanto, também se pode argumentar que se o Vocabulário Comum só se referisse às terminologias científicas e técnicas a redacção teria sido certamente outra, mais simples. Embora se reconheça que neste texto a palavra através está incorrectamente aplicada segundo os vernaculistas portugueses, isso não é razão suficiente para não pensar que o redactor não preferiria um texto sem ambiguidade como: «Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 da Janeiro de 1993, de um vocabulário comum ortográfico da língua portuguesa sobre terminologias científicas e técnicas, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível.»
Além disso, o bom senso liga a necessidade do Vocabulário Comum à elaboração dos dicionários da língua portuguesa previstos no novo AO, como indicado acima.
Então, os opositores do novo AO, tentando ganhar tempo, para ver se conseguem impedir a entrada em vigor prática do Acordo, argumentam que este Vocabulário Comum deveria estar pronto um ano antes de o Acordo entrar em vigor, como está imposto no Preâmbulo do documento. De qualquer forma, mesmo referindo-se só às terminologias, a verdade é que tal vocabulário ainda não está feito. Assim, dizem que o Brasil contrariou o Acordo de 1990 pondo o acordo em vigor sem haver o vocabulário previsto e que em Portugal isso não é aceitável. Dizem que não há língua comum sem um Vocabulário Comum e que, de outra forma (o novo AO em vigor unilateralmente), os outros países da lusofonia são ignorados.
Nestes argumentos, esquecem, porém, que depois da assinatura do Acordo houve um Protocolo Modificativo (aceite por todos os signatários do Acordo de 1990) que permite a entrada em vigor do novo AO nos países que referendem este Protocolo, bastando só a assinatura de três países para o Protocolo ter validade. Ora este Protocolo deixou de exigir o prévio Vocabulário Comum.
Então, o Brasil conseguiu rapidamente a assinatura de Cabo Verde e de São Tomé, podendo legalmente avançar.
Depois disso, Portugal também já o referendou e, portanto, pode legalmente pôr o Acordo em vigor quando entender. Em rigor, segundo este Protocolo, "legalmente" o novo AO está já em vigor em quase todos os países que o assinaram em 1990 (faltam só Angola e Moçambique referendarem o Protocolo). "Na prática", está em vigor quando os Estados o impõem nos seus documentos oficiais e nas escolas, o que o Brasil fez no início de 2009 e Portugal tem uma moratória de agora cerca de 5 anos para o fazer.
Em resumo, o argumento dos opositores com base na inexistência ainda do Vocabulário Comum não é válido para impedir que o novo AO entre em vigor. Esta conclusão não impede, contudo, que mereçam todo o respeito daqueles que como eu defendem o novo AO. As suas objecções são válidas no aspecto de que só teremos uma língua comum quando os dicionários globais da língua portuguesa previstos no novo AO existirem, o que exige um prévio estudo de um Vocabulário Comum Global, como se disse acima.
Note-se que estão a aparecer já dicionários com a pretensão de servirem toda a lusofonia, mas os termos de outros países poderão ter sido arbitrariamente escolhidos, duma época em que Portugal mandava na língua, não o fruto de uma decisão legítima de cada país irmão na língua e, sobretudo, esses dicionários não são o resultado de um acordo para evitar duplicações desnecessárias. É inaceitável que o património linguístico esteja sujeito a interesses meramente comerciais.
3. Argumento daqueles que desvalorizam o Vocabulário Comum
Ultimamente, uns quantos linguistas apoiantes do novo AO estabeleceram autoritariamente que o texto do acordo se refere unicamente à terminologia científica e técnica. Estão na linha da ABL, que assim justifica ter avançado sem esse vocabulário e com isso pensam anular a objecção daqueles que o exigem para que o novo AO entre em vigor em Portugal. Esquecem que, de qualquer maneira, se impunha que esse vocabulário terminológico estivesse pronto um ano antes do novo AO entrar e vigor, e não é por aí que vencem os argumentos dos opositores.
Estabeleceram, também autoritariamente, que não é preciso o Estado português indicar qual é a lei na língua, como se fosse possível a comunidade linguística ver-se confrontada com soluções díspares nos três vocabulários em perspectiva (o já existente da Porto Editora, os em vias de publicação: da Academia das Ciências de Lisboa [ACL] e do Instituto de Linguística Teórica e Computacional [ILTEC]). A mim, o que me espanta é estes doutos nem sequer terem meditado no que fez o Brasil: o vocabulário oficial desse país é o da Academia Brasileira de Letras, ponto final.
As pessoas que decidem pontificar na língua têm de entender, também, não são seus donos. O Estado (que tanto se ocupa em impor ao cidadão comportamentos que deviam ser decisões da vida privada) não se pode eximir de responsabilidades nas questões que dizem respeito aos valores nacionais. Portugal precisa de ter uma lei na língua como teve até esta data na norma de 1945 (o Vocabulário Resumido da ACL, de 1970 e a pequena alteração no decreto 32/73 sobre as palavras derivadas).
Não é aceitável na língua defender interesses instalados, e exige-se, ao menos no património linguístico, uma orientação respeitada e sensata.
4. Parecer pessoal
Finalmente, já que toda a gente se considera com direito de botar sentença na língua e até de realizar já publicações com avultados investimentos nessas sentenças, cá vão novamente também as minhas, sobre o vocabulário para o novo AO:
a) É necessário haver um vocabulário de referência para o português europeu, como existe para o português brasileiro (e até para o galego). O Estado tem de ponderar (entre os três vocabulários que deixou paradoxalmente existir, parte com dinheiros públicos) qual o que vai escolher para os seus documentos oficiais e para as escolas. Será esse que adoptarei e recomendarei em Ciberdúvidas.
b) Entretanto, o documento oficial do novo AO é o texto de 1990, considerado já um documento comum, pois regista as variantes admissíveis (ex.: topónimo/topônimo). No país que tiver o Acordo de 1990 em vigor, são válidos todos os vocábulos taxativamente indicados nesse texto (ex.: co-herdeiro no Brasil, embora o VOLP brasileiro registe coerdeiro; concepção em Portugal, embora seja conceção recomendável no novo AO para Portugal).
Não é legítimo propor soluções diferentes daquelas que estão registadas no texto do Acordo, sem novo acordo entre os signatários, a não ser unicamente como variante a este texto, proposto para a comunidade linguística respectiva.
c) Na dúvida, deve-se atender à tradição, para respeitar a história das palavras, e para que uma grande mudança brusca não desagregue a comunicação entre as gerações, criando revoltas insanáveis, com grupos da comunidade linguística a teimarem na norma antiga. Lembre-se que as grandes revoluções na língua só são possíveis em períodos socialmente revolucionários (a drástica de 1911 vinha após a implantação da República; a menos drástica, mas também muito grande de 1986, foi logo recusada veementemente; e esta, de 1990, menos forte, esteve na gaveta 20 anos, com muitos opositores ainda).
d) Os restantes países da lusofonia devem ser convidados a apresentar os respectivos vocabulários que difiram dos apresentados por Portugal e pelo Brasil, para que, a partir de todos os vocabulários, haja reuniões, nas quais se estabeleça um Vocabulário Comum Global, base para os dicionários globais da comum língua, estabelecidos segundo o novo AO. A CPLP poderá fomentar este objectivo e conseguir, até, a decisão de se avançar nas reuniões só com os países que estiverem interessados.
e) A língua precisa de continuar a ser simplificada. Os acentos ainda são excessivos e alguns só se justificam por questões didácticas, estando às vezes incoerentes (ex.: em proíbo é imposto o acento, mas em proibido, com o mesmo hiato, o acento é negado...); o hífen, mesmo com as simplificações do novo AO, ainda não está inteiramente sistematizado e, frequentemente, ou se sabe de cor se o composto tem hífen, ou é preciso consultar o vocabulário.
Os vocabulários adequados aos diversos países poderão apresentar variantes que sugiram já estas simplificações, mas distinguindo-as como tais, assim como distinguem as recomendações de utilização geográfica nas outras duplas grafias previstas no novo AO.
f) Um novo acordo linguístico deverá permitir ainda esclarecer ou corrigir algumas das recomendações do Acordo de 1990, entretanto passíveis de emenda com o evoluir da ciência linguística, ou permitirá aperfeiçoar aquelas decisões que têm sido mais sujeitas a críticas justas das comunidades linguísticas.
Esta acção torna necessário que haja novas reuniões entre os representantes dos países irmãos para se conseguir um consenso nas alterações substanciais. O que pode ser feito no seguimento das reuniões preconizadas em d).
g) As alterações na língua que sejam consideradas indispensáveis e úteis, sempre atendendo a c), não podem no entanto ser feitas em prazos muito curtos, para evitar a desorientação dos falantes e para proteger os direitos legítimos das editoras.
h) A minha diferença nestes pareceres pessoais, em relação aos dos doutos "pontífices" a que acima me referi, é que me proponho unicamente indicá-los para ajuda à escolha das melhores soluções.