Como já foi referido [ver À volta dos manuais escolares], está a decorrer o período de adopção de manuais escolares do Ensino Básico e do Secundário para o 3.º ano, o 6.º ano e o 12.º ano. Já falámos dos manuais de Língua Portuguesa para o 3.º ano. O período de análise e escolha dos manuais para o 6.º ano decorre até ao dia 9 de Junho, e para o 12.º ano, até ao dia 24 de Junho. Ora, após a afixação pública da lista dos manuais adoptados, não é permitida qualquer alteração, no período de vigência legalmente estabelecido, que, no momento, é de 4 anos para os manuais do Ensino Básico. É um longo período sem possibilidade de alteração, o que leva a que essa adopção deva ser cuidadosamente ponderada.
Os manuais de Língua Portuguesa para o 6.º ano de escolaridade assumem uma grande importância, pois nesta disciplina é essencial o texto e os suportes escritos, de imagem e de som.
A Circular n.º 6/2005, de 14 de Abril, circular anual da Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular, apresenta os «Critérios de apreciação dos manuais», que orientam os professores nessa escolha e que dizem respeito a quatro grandes parâmetros: o 1.º é Organização e Método; o 2.º, a Informação que o manual contém; o 3.º, a Comunicação, e o 4.º são as Características Materiais. Já vimos [anteriormente] em pormenor os critérios relativos a cada um destes quatro parâmetros. E, destes parâmetros, o mais importante é, sem dúvida, o da Informação que o manual contém, dado o seu reflexo na aprendizagem dos alunos. Ora, neste campo avultam três aspectos.
O 1.º a considerar é se o manual «responde aos objectivos e conteúdos do Programa» e «às orientações curriculares».
Para se verificar tal correspondência, é necessário analisar o programa. E, do programa de Língua Portuguesa para o 6.º ano de escolaridade, podemos salientar cinco conjuntos de objectivos:
1.º– Um primeiro diz respeito ao desenvolvimento da competência de comunicação oral, que assenta não só no conhecimento de vocabulário e estruturas gramaticais como na capacidade de seleccionar e reter informação bem como de utilizar recursos prosódicos e pragmáticos adequados à narração de situações, resposta a perguntas, sua formulação, intervenção adequada em situação de comunicação, etc.
Ora, há diversos manuais que contêm CD de apoio e apresentam boas sugestões de actividades neste domínio. Também as transparências que alguns manuais contêm podem ser úteis para actividades que desenvolvam a competência de comunicação oral. Não são, no entanto, indispensáveis nem CD, nem transparências, já que os próprios textos do manual (e imagens ou ilustrações) poderão ser utilizados para exercícios de compreensão e expressão oral. Importa, pois, apreciar a qualidade e diversidade sobretudo dos textos que o manual contém.
2.º – E passamos, assim, ao segundo objectivo, que é o de os alunos contactarem com textos de temas variados da literatura nacional e universal.
São estas as palavras do programa de 6.º ano, que contém, a este respeito, uma lista de obras propostas para leitura orientada, de autores portugueses e de estrangeiros, como Aquilino Ribeiro, António Sérgio, Jaime Cortesão, Alves Redol, Sophia de Mello Breyner Andresen, Maria Alberta Menéres, La Fontaine, Hans Christian Andersen, contos tradicionais portugueses recolhidos por Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Consiglieri Pedroso ou Ataíde de Oliveira, traduções de João de Barros e Jorge de Sena; Almeida Garrett, com a célebre versão do romance em verso «A Bela Infanta»; e poemas seleccionados de colectâneas da responsabilidade de autores como Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Camacho, Alice Gomes, Maria Alberta Menéres, Adolfo Simões Müller e Natércia Rocha.
Com estas indicações, deverá, assim, analisar-se o ‘corpus’ textual que o manual contém, ver se ele abrange estes autores, permitindo que os alunos possam efectivamente ler textos de diversos autores, de modo não só a conhecerem grandes escritores portugueses como a poderem fazer uma selecção de acordo com os seus gostos.
Verifica-se que diversos manuais, apesar de conterem até textos interessantes, não contemplam todos estes autores, elegendo outros, muitos outros, em alternativa. Ora, o corpo textual indicado no programa é essencial, e deverá ser respeitado. Poderão surgir nos manuais outros autores, naturalmente, mas os indicados no programa, esses, deveriam constar de qualquer manual. Verifica-se, no entanto, que há manuais, por exemplo, que não contêm textos nem de Aquilino Ribeiro, nem de Jaime Cortesão, nem nenhum dos Contos Gregos, de António Sérgio, nem A Vida Mágica da Sementinha, de Alves Redol; outros que não contêm o texto «A Bela Infanta», versão recolhida por Almeida Garrett (texto belíssimo); outros que não incluem nenhuma das fábulas de La Fontaine; outros que não contêm nenhum dos contos de Andersen; outros ainda que escolhem adaptações dos contos tradicionais por outros autores que não os indicados no programa.
É, pois, fundamental, ver os textos que o manual contém. Os textos são o essencial num manual de Língua Portuguesa.
3.º – Um terceiro objectivo consiste em desenvolver a competência de leitura, ou seja, desenvolver a capacidade de interpretar textos, de apreender os sentidos de um texto, criar autonomia e velocidade de leitura, dominando as estratégias de selecção de informação nos textos.
Com este objectivo, devem ser analisadas as actividades propostas e os questionários sobre os textos, verificando se promovem um progressivo grau de conhecimento de vocabulário, se contribuem para o desenvolvimento cognitivo, exigindo operações mentais de progressivo grau de complexidade, por exemplo, além das perguntas sobre factos – quem faz o quê, onde e quando – deverão também existir perguntas, por exemplo, sobre as consequências de uma atitude, sobre a moralidade de uma história, sobre o porquê de um título, deverão pedir que o aluno explique frases ou expressões do texto, utilizando um discurso próprio, compare atitudes, relacione situações, dê a sua opinião, etc., ou seja, os questionários deverão exigir do aluno não apenas o conhecimento (ou seja, a pura identificação) e a compreensão, mas a aplicação do conhecimento, a análise, a síntese, a avaliação.
Verifica-se que há manuais de 6.º ano de boa qualidade a este nível, mas outros há com questionários pobres, incidindo quase exclusivamente na identificação.
4.º – Um quarto objectivo é o de aperfeiçoar a competência de escrita.
A propósito de um texto, de uma imagem, de uma situação, podem os manuais conter propostas de actividades de escrita que desenvolvam esta competência nos alunos. Este aspecto também é importante, e há actividades muito sugestivas em diversos manuais.
5.º – Finalmente, o quinto grande objectivo do programa consiste na apropriação, por parte do aluno, de conhecimentos gramaticais que facilitem a compreensão do funcionamento dos discursos e o aperfeiçoamento da expressão pessoal.
Para que o manual sirva de apoio no sentido da consecução deste objectivo, as actividades sobre o funcionamento da língua também não devem ficar-se pela simples identificação, mas proporcionar a aplicação, a relacionação, a análise, a transformação, a construção, a criação. Por exemplo, mais do que a simples identificação da classe morfológica ou da função sintáctica, importa que o aluno saiba expandir frases, incorporando novos termos; transformar uma frase afirmativa nos vários tipos de negativa e vice-versa; substituir, em contextos dados, palavras pelos seus sinónimos; aplicar os tempos e modos verbais por meio da transformação de frases, introduzindo advérbios ou conjunções que exijam outro tempo ou modo, etc. E também é fundamental, ao terminar o 2.º Ciclo, que o aluno interiorize regras claras de funcionamento da língua.
Na aprendizagem de qualquer conteúdo respeitante ao funcionamento da língua deverão existir três momentos, não obrigatoriamente na sequência que vou utilizar, mas os momentos são estes: a explicação clara sobre o conteúdo, com a enunciação da respectiva regra, se existir; o exemplo, de modo a que o aluno observe a ocorrência; e, finalmente, o exercício prático.
Este é, assim, um último aspecto importante a ser analisado nos manuais.
Tudo o que referi até ao momento diz respeito à exigência de o manual responder aos objectivos e conteúdos do programa.
2.º – Um segundo aspecto a salientar no campo da Informação que o manual contém diz respeito à explicitação das aprendizagens essenciais. Deverá verificar-se se estão indicados, nos índices ou planos do manual, os conteúdos relativos a cada domínio do programa (comunicação oral, comunicação escrita e funcionamento da língua), e se, em cada um deles, avulta o que é essencial, de modo a que o próprio aluno se aperceba dos aspectos que deverá trabalhar com maior frequência e profundidade. Por exemplo, um manual para o 6.º ano contém, ao longo das unidades, um pequeno quadro intitulado «O essencial sobre». E sobre o quê? Por exemplo, a translineação, os elementos da narrativa, a estrutura da frase, etc. Este é um aspecto positivo, normalmente menorizado na generalidade dos manuais.
3.º – Finalmente, há a considerar um terceiro aspecto, que é se «o manual fornece informação correcta, actualizada, relevante e adequada aos alunos a que se destina». Sublinham-se os adjectivos «correcta, relevante e adequada»... É que um ou outro manual por vezes contém informação que não é totalmente correcta, nem relevante nem adequada aos alunos a que se destina.
Podemos apresentar cinco situações.
a) A primeira diz respeito à adequação dos textos escolhidos ao público a que se destina, a nível do vocabulário e da moralidade subjacente. Por vezes – poucas, felizmente –, surge num ou noutro manual um texto inadequado a este nível etário. Pode escolher-se como exemplo o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen «Pranto pelo dia de hoje», um belo poema, mas que não é adequado a alunos de 11 anos, não só pela ausência de pontuação como pela temática, e que aparece num manual para o 6.º ano:
Pranto pelo dia de hoje
Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas.
Como se vê, não é um poema adequado a alunos de 11 anos.
b) A segunda situação diz respeito ao rigor. Por vezes, há lapsos ou incorrecções. Por exemplo, num manual, a propósito dos graus dos adjectivos, surge o desenho de um aluno com a seguinte fala: «Tudo isto é chiquérrimo demais para mim.» Ora, o adjectivo chique não é o adequado para caracterizar o estudo dos graus dos adjectivos, nem faz o superlativo em «-érrimo».
c) Uma terceira situação é a da apresentação de palavras ou frases incorrectas a nível da pontuação, da acentuação ou da ortografia, para que o aluno as corrija ou escolha a forma correcta. Dou só o exemplo em que se apresentam ao aluno as formas «fi-la» e «fízia», «pu-la» e «púsia», «tenhamos» e «tênhamos». Ainda que a forma incorrecta esteja assinalada como errada, este é um exercício a evitar neste nível de ensino, o 2.º Ciclo, em que a norma, a regra, o que é correcto é que deve ser trabalhado, é que deve ser apresentado no manual, sem se introduzir simultaneamente a forma incorrecta. As eventuais incorrecções dos alunos a nível da acentuação, da ortografia, da pontuação, etc., deverão ser corrigidas a partir das produções dos próprios alunos, por meio de um trabalho individualizado; e, neste nível de ensino, não se deve pôr o incorrecto em letra tipográfica...
d) Uma quarta situação diz respeito à forma como se procede ao ensino de palavras ou estruturas que previsivelmente podem conduzir ao erro, nomeadamente a nível da ortografia, em que as palavras aparecem muitas vezes descontextualizadas e com a deficiente enunciação de regras.
Vejamos este exemplo que surge num manual de 6.º ano. Pretende-se que o aluno complete palavras às quais foi suprimida ou a letra «e» ou a «i»; e são dadas várias palavras, por esta ordem: estrear, espernear, teatro, alhear, visita, edifício, sacrifício, baseado, ementa, óleo, areal, palavras estas não inseridas em qualquer contexto. Surge apenas um quadro em que se enunciam as regras de utilização do «e» ou do «i». A primeira dessas regras diz o seguinte: «O e pode pronunciar-se /i/ no início de uma palavra; exemplo: educação.» Ora, esta afirmação não é regra nenhuma, nem contribui para qualquer aprendizagem por parte do aluno, pois há diversas palavras cujo som inicial é /i/ e que se escrevem efectivamente com «i», e não com «e», como por exemplo «ideal», «ideia», «idêntico», «idioma», «ídolo», «idoso». E só escolhi palavras com um começo semelhante ao de «educação».
A regra que se segue no manual ainda é mais discutível. É a seguinte: «O e pode pronunciar-se /i/ no meio da palavra, antes de a ou o, exemplos: gémeo, cadeado». Pois pode, mas há muitas outras palavras em que o som /i/ no meio da palavra antes de «a» e «o» se escreve efectivamente «i», e não «e», como algumas das próprias palavras que o manual apresenta (edifício, sacrifício, economia) ou outras como alegria, correria, fantasia, fantasiado, fatia, fatiado, maioria, monarquia, rebeldia, teimosia, ventania, desvio, feitio, Rossio, desafio, navio, vazio.
Assim, não servem de nada estas duas supostas regras. Apenas para confundir os alunos.
E a confusão até existe no próprio manual, que no mesmo quadro apresenta como regra final a seguinte: «O i pode pronunciar-se /e/ nas palavras que derivam de outras terminadas em eia ou eio; exemplos: asseio à asseado; ideia à ideal.» Como se vê, não é o «i» que se pronuncia /e/ (a palavra é asseado, com «e») mas o «e» que se pronuncia /i/: asseado, ideal.
Em conclusão, este exercício não serve para que o aluno aprenda quando deve escrever «e» se a pronúncia for /i/, apenas serve para que ele fique confundido.
Um outro exemplo diz respeito ao emprego de g (gê) ou j (jota). É enunciada a seguinte regra: «A terminação -gem [com gê/guê] só aparece em nomes que designam acções, sentimentos, qualidades ou estados [entre parênteses] (nomes abstractos).» E os exemplos apresentados são «viagem» e «camaradagem». Ora, esta é uma regra inaceitável. A terminação -gem com gê/guê surge em palavras que não são substantivos abstractos, como por exemplo «carruagem», «cartilagem», «estalagem», «ferragem», «folhagem», «garagem», «pastagem», «tatuagem», «vagem», «ferrugem», «penugem»...
À semelhança deste, surgem exercícios de ortografia sobre o x ou ch, a existência ou ausência de h inicial, o sufixo pre- ou per-, etc. E este tipo de exercícios aparece em diversos manuais, normalmente com esta forma de tratamento: a de introduzir simultaneamente as duas situações.
Ora, o tratamento simultâneo e mal explicado de dois conteúdos que podem confundir-se só favorece a aquisição do erro; não é didacticamente aconselhável.
Em vez de exercícios desse género, seriam preferíveis outros só com palavras em que a dificuldade surgisse (por exemplo, só situações em que o «e» se pronunciasse /i/, pois aí é que reside a dificuldade), e em que se indicasse a etimologia, ou se explicasse a formação da palavra, ou ela fosse integrada em famílias de palavras, ou se relacionasse com outras, palavras sempre inseridas em contextos e com regras claras.
e) Uma última situação diz respeito às palavras homófonas e às parónimas. As palavras homófonas são aquelas que têm o mesmo som, mas se escrevem de forma diferente, como «à», contracção da preposição com o artigo, e «há», forma do verbo haver. As palavras parónimas são aquelas que têm um som parecido e que se podem confundir, como «cumprimento», que significa «saudação», e «comprimento», que é uma distância, um tamanho, uma grandeza. As palavras podem confundir-se, mas são palavras diferentes, que não têm nada que ver uma com a outra. O conteúdo das palavras homófonas surge pela primeira vez no programa do 6.º ano de escolaridade, mas as palavras parónimas pertencem apenas ao programa do 7.º ano de escolaridade. No entanto, apesar de não serem do programa, há diversos manuais do 6.º ano que as apresentam. Deverá verificar-se a forma como estes conteúdos são trabalhados, com a respectiva explicação, exemplo e exercício.
Enfim, importa seleccionar um manual que contribua para o desenvolvimento intelectual do aluno, com actividades lógicas, que exijam compreensão e reflexão, e textos representativos de uma herança cultural que a Escola tem o dever de fazer com que se transmita de geração em geração.
O manual é um auxiliar precioso no apoio à leccionação da disciplina de Língua Portuguesa, pelo que deve haver, por parte dos autores, um cuidado especial na sua concepção e, por parte dos professores, um cuidado especial na sua escolha, de modo a que ele se constitua, efectivamente, como um bom instrumento de trabalho e contribua para a qualidade de ensino.
Texto constante da emissão n.º 18 do programa “Páginas de Português”