Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No DT, o grupo nominal é definido como aquele cujo núcleo é um nome ou um pronome. Se, na maior parte dos casos, esta classificação se apresenta pacífica, surgem-me dúvidas quando quero classificar o pronome oblíquo, que substitui um grupo preposicional. Agradecia que me clarificasse.

Resposta:

O termo pronome oblíquo não consta do Dicionário Terminológico. Suponho que a consulente se quer referir à terminologia usada por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (1985, pág. 279), que falam em formas oblíquas do pronome como sendo as que «se empregam fundamentalmente como objecto (directo ou indirecto)».

Parece-me , portanto, que a dificuldade exposta se resume aos pronomes que correspondem aos complementos indireto e oblíquo, porque são estes os  introduzidos por preposição. Sendo assim, os pronomes que correspondam a complementos oblíquos não oferecem problemas, porque são parte de grupos preposicionais: «falei com a Joana» = «falei com ela». Já a realização dos complementos indiretos levanta um problema: por um lado, são grupos preposicionais, quando incluem uma expressão nominal — «dei um livro à Joana»; mas, quando realizados por um pronome, não existe tal preposição, e deixamos de ter um grupo preposicional — «dei-lhe um livro». No âmbito do próprio DT, parece-me não haver outra solução senão analisar lhe como grupo nominal, com a ressalva de se tratar de forma dativa (cf. "Caso", B 2.2.1. "Flexão nominal e adjetival", DT).

 

Pergunta:

Cíclades e Espórades, dois famosos arquipélagos gregos do mar Egeu, devem ter os seus nomes ditos e grafados assim mesmo, em português, ou deveríamos dizer e escrever Cícladas e Espóradas? Ou todas as quatro formas supramencionadas seriam corretas? Se este último alvitre for verdadeiro, quais seriam as mais tradicionais no nosso idioma?

No caso de Dodecaneso, outro arquipélago grego do Egeu e próximo à costa da Turquia, o seu nome, tal como o escrevi, parece ser o adequado para o português, não?

Quanto ao arquipélago das ilhas Jônicas, seu nome seria este mesmo, ou seria outro: ilhas Jônias?

Para estes quatro arquipélagos e para os seus naturais ou habitantes, registrar-se-iam gentílicos em nossa língua?

Resposta:

No Vocabulário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, apenas se regista a forma Cícladas, mas é omisso a respeito dos restantes nomes. No entanto, o Dicionário Ilustrado Prático Lello (1959) e o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, também registam Cíclades, a par de Espórades, Dodecaneso e ilhas Jónias ou Jónicas.

Quanto a gentílicos, registam-se cicladense, cicladiano e cicládico, jônio ou jônico e dodecanésio quer nos dicionários já referidos quer ainda no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e no Dicionário Houaiss. Para Espórades, não encontro gentílico correspondente em todas estas fontes, o que deixa supor não existir forma consagrada. Sendo assim, abre-se um leque de possibilidades que aguarda a oportunidade de se fixar: "esporadense", "esporadiano", "esporádico"1.

1 A forma "esporádico" seria assim homónima de esporádico, «raro, disperso, espaçado, esparso», de origem grega: «gr. sporadikós,

Pergunta:

Estou a elaborar um trabalho que pede: «Identifique diferenças linguísticas da língua portuguesa na região de São João da Madeira, distrito de Aveiro, quer ao nível do léxico (vocabulário), quer ao nível da fonética (som). Argumente acerca dessas diferenças relativamente a outras zonas do país no sentido de pôr em evidência eventuais situações de discriminação (ou não) a nível profissional.»

Estive a investigar em websites, na própria câmara e na biblioteca, e nada referente ao assunto pedido. O que aparece é o seu desenvolvimento da língua e mais nada; caso especifico, nada.

Resposta:

Tendo em conta a proposta de L. F. Lindley Cintra ("Nova proposta de classificação dos dialectos galego-portugueses", Boletim de Filologia 22, Lisboa, Centro de Estudos Filológicos, 1971, págs. 81-116), verifica-se que São João da Madeira, no norte do distrito de Aveiro (Portugal), se situa na zona dos dialetos setentrionais portugueses. É, pois, de esperar que nessa cidade portuguesa o discurso de muitos falantes exiba características fónicas desses dialetos, sobretudo uma que contrasta claramente com o português standard ou padrão: trata-se do chamado betacismo, ou, como se diz popularmente, a confusão entre o v e o b (vale soa "bale"). Quanto ao léxico, o contraste pode não ser tão claro, mas, pertencendo São João da Madeira já à Área Metropolitana do Porto, é natural que aí sejam conhecidos vocábulos do falar tripeiro (p. ex., aloquete ou cruzeta), a par de outros mais específicos da região onde a cidade se situa — vocabulário a respeito do qual não me foi possível encontrar estudos. Sugiro, portanto, que o consulente faça a sua própria recolha.

Quanto à discriminação de indivíduos em contexto profissional, por causa de traços dialetais, existe na realidade uma certa pressão para censurar (consciente ou inconscientemente) certos traços regionais da pronúncia em muitos ramos de atividade, sobretudo os que envolvem maior contacto com o público. Quem viveu ou cresceu em meios rurais sente-se muitas vezes constrangido a disfarçar a pronúncia nativa quando se desloca para um grande centro urbano. Mas há c...

Pergunta:

Na frase «Passeei hoje por Tomar a pé», o constituinte «por Tomar» é complemento oblíquo?

Tenho dúvidas quanto à gramaticalidade do par pergunta-resposta: P: O que é que eu fiz por Tomar? R: Passeei hoje a pé.

Resposta:

É modificador, como revela o facto de, no referido teste, a ocorrência de «por Tomar», como a de «a pé», ser possível na pergunta:

«O que é que eu fiz hoje por Tomar? Passeei hoje a pé.»

Pergunta:

Gostaria de perguntar qual a função sintática da expressão «de fome» na frase «O João morreu de fome».

Resposta:

A expressão «de fome» não desempenha função sintática.

Em princípio, poderia parecer modificador (adjunto adverbial na terminologia brasileira), porque o verbo morrer é intransitivo. Contudo, a aplicação do conhecido teste pergunta/resposta para identificação do modificador não confirma «de fome» como modificador (* indica inaceitabilidade):

1. *O que aconteceu ao João de fome? Morreu.

2. O que aconteceu ao João? Morreu de fome.

A inaceitabilidade da ocorrência de «de fome» na pergunta em 1 sugere que este constituinte é indissociável de «morreu». Contudo, considero 2 aceitável, não porque «de fome» seja um complemento verbal, mas, sim, em virtude de esse constituinte formar uma expressão fixa com morrer. Sendo assim, a expressão «morrer de fome» deve ser analisada como um todo (como se a expressão fosse um verbo definido por uma só palavra, tal como sucede com o inglês to starve, «morrer de fome»).