Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No Largo de S. Domingos, em frente da Igreja de S. Domingos, em Lisboa, existe uma inscrição no chão a fazer uma referência a um massacre em que as vítimas foram judeus. Reza a inscrição: «Tributo da cidade de Lisboa às vítimas do massacre judaico de 19 de Abril de 1506.» Pergunta: foram os judeus que massacraram, ou foram os judeus que foram massacrados? Não teria a frase de estar escrita da seguinta forma: «Tributo da cidade de Lisboa às vítimas judaicas do massacre de 19 de Abril de 1506»?

Muito obrigado.

Resposta:

A redação proposta teria sido mais adequada, uma vez que, como demonstra o consulente de forma certeira, «massacre judaico» é uma expressão ambígua. Com efeito, pressupondo o verbo massacrar, que tem sujeito e complemento direto («alguém massacra alguém»), o substantivo massacre pode ocorrer com um complemento suscetível de tanto remeter para o autor do massacre como para a sua vítima; tal complemento pode ser expresso por um adjetivo relacional como no exemplo em questão – judaico. O contexto e a informação enciclopédica levam-nos a favorecer mais uma leitura do que outra: se falarmos do Portugal quinhentista, da Rússia dos pogroms ou da Alemanha nazi, a expressão «o massacre dos judeus»  refere-se inevitavelmente a vítimas de nação e confissão judaicas. Mas, se se atender ao conflito israelo-árabe a partir de 1948, e mesmo sabendo que muitos judeus continuam a ser vítimas, já é mais provável que outros judeus passem a ser autores de massacres.

Seja como for, o substantivo massacre também aceita um segundo complemento, introduzido pela preposição por e de valor agentivo, que desambigua tudo, como se ilustra em «o massacre dos judeus pelos cristãos de Lisboa». Neste exemplo, não restam dúvidas de que, mesmo que se faça a substituição de «dos judeus» por «judaico» («massacre judaico»), foram os judeus as vítimas, e não os lisboetas que iam à missa.

 Cf.

Pergunta:

Agradecendo todos os vossos esclarecimentos que são preciosos e muito claros, queria que me ajudassem sobre o seguinte: estará correta a frase «Ao fundo, neste outro vagão onde agora nos sentámos e, com evidente preocupação, tentávamos encontrar uma escapatória àquela situação...»? O advérbio agora seguido de sentámos e tentávamos é a origem da dúvida. Analisei a resposta à questão colocada sobre «Agora, eu caminhava à beira-mar», mas não sei se se pode assimilar.

Obrigado.

Resposta:

Como se diz na resposta que consultou, o advérbio agora não se usa apenas em relação a uma situação presente. Também pode ocorrer numa narrativa referente a factos passados ou ficcionados, conforme se regista no Dicionário Houaiss, quando significa: «nesse (ou naquele) instante, momento, tempo etc. Ex.: esgotara suas energias, agora só queria descansar».

Pergunta:

O termo inglês establishment tem tradução na nossa língua, ou é mais conveniente usar o anglicismo?

Resposta:

O termo establishment tem sido usado tal qual, mas pode empregar-se um termo português em lugar dele.

A palavra tem várias traduções em função do contexto de ocorrência; por exemplo, «ordem estabelecida» ou «classe dirigente» (cf. o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia, e o Portuguese-English Oxford Dictionary). Em relação a conflitos e compromissos sociais, aproxima-se de sistema, no sentido de «qualidade econômica, moral, política de uma sociedade que condiciona, integra e/ou aliena um indivíduo» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostaria de saber se as palavras habitante, viajante, emigrante e imigrante são palavras complexas por sufixação.

Obrigada.

Resposta:

Trata-se de palavras complexas, derivadas por sufixação, cuja base é um tema verbal, nos casos apresentados, habita-, viaja-, emigra- e imigra-, que correspondem aos infinitivos verbais habitar, viajar, emigrar e imigrar, todos pertencentes à 1.ª conjugação. Sobre o sufixo -nte, lê-se no Dicionário Houaiss (s. v. -nte; desenvolveram-se as abreviaturas):

«da desinência latina de particípio presente -ns, -ntis, numa relação que vem quase intacta do latim: 1.ª conjugação latina -āre > -(a)ns, (a)ntis; 2.ª conjugação latina lat. -ēre > -(e)ns, (e)ntis; 3.ª conjugação latina -ĕre > -(e)ns, (e)ntis; 4.ª conjugação latina lat. -īre > -(i)(e)ns,(i)(e)ntis, donde em português as formas em -ante (nos verbos da 1.ª conjugação) e -ente (nos verbos da 2.ª e 3.ª conjugação); muitos verbos da 3.ª conjugação latina ora ficaram na 2.ª conjugação portuguesa (dicĕre > dizer), ora passaram para a 3.ª conjugação portuguesa (conducĕre > conduzir) com seus respectivos particípios presentes (conducente); no processo, a partir do século XIV, a 3.ª conjugação portuguesa, donde quer que provinda, passou a desenvolver a forma -inte, vernácula, que convive, em níveis de diferentes registros e para fins diferentes, com os originais eruditos (seguinte e seqüente, ouvinte e audiente); virtualmente, todos os verbos da língua portuguesa podem derivar adjetivos ou substantivos em -nte [...].»

Pergunta:

Ao trabalhar a consciência fonémica nos meus alunos (1.º ciclo do ensino básico), quantos fonemas devo aceitar para a palavra sifão?

Resposta:

A palavra sifão tem cinco fonemas (também chamados segmentos; cf. Dicionário TerminológicoDT): [s][i][f][ã][w̃].

Note-se que um ditongo, como é o caso da sequência formada por [ã][w̃] (na grafia ão), é formado não por um, mas por dois segmentos – uma vogal e uma semivogal (pai, mãe, compram) ou por semivogal e uma vogal (quarto) – que constituem o núcleo de uma sílaba. Tal não significa, portanto, que um ditongo seja o mesmo que um segmento (cf. DT e Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, págs. 48/49).1

1 No entanto, do ponto de vista estruturalista, o conceito de fonema (e já não o de segmento) permite dizer, por vezes, que um ditongo é a realização fonética de um único fonema. Trata-se de uma questão complexa, que envolve o problema de distinguir entre fonologia e fonética, mas que, evidentemente, não tem de ser discutida no contexto dos ensinos básico e secundário.