«(...) Através das vidas cantadas, [percebe-se como] a música atravessa todos os momentos da vida em sociedade, contextualizando os fenómenos, social e historicamene. (...)»
Luís Loforte publicou a obra Vidas Cantadas – um legado de Samora Machel (um olhar sobre as canções de trabalho). Trata-se de um majestoso registo, no qual transcreve e interpreta canções de e no trabalho, mas também canções que cantam vidas e o quotidiano; algumas vezes contrapondo a sociedade moçambicana à portuguesa. Fê-lo como uma demanda social, preenchendo um vazio que ainda se faz sentir em Moçambique. Mais do que isso, contextualizou historicamente grande parte dos momentos narrados. Samora Machel, antigo Presidente de Moçambique, é um dos personagens apresentados, quer enquanto figura histórica, quer como cidadão. Esta ilustre figura é recordada como estimuladora da consciência cultural moçambicana e foi, na verdade, quem mandou gravar canções dos estivadores. Elas eram proibidas na rádio, por serem consideradas obscenas. O livro [apresentado na capital moçambicana no dia 22/06/2023 ] faz ainda referência a alguma onomástica moçambicana, explicando parte das identidades moçambicanas.
Pela leitura do livro, percebe-se que Loforte acredita na grandeza artística e terapêutica da manifestação que descreve. O autor é pesquisador e praticante do “cantar a vida”, na sua própria cultura. Laborou cantando «canções de ninar» (das que se cantam para as crianças quando colocadas ao colo). É, na verdade, uma grande marca na sua vida, que remonta à tradição oral que viveu. Tendo sido aio, conforme afirma na obra, cantou para outras crianças as músicas que o seu «coração aprendeu» de sua aia. Essa vivência e outras que narra colocaram-no a trabalhar na pesquisa de que resulta este livro, como etnólogo ipso facto. Esteve lá (no local da pesquisa). Viu. Viveu. Questionou os que sabem do assunto, bem como os que o viveram e, desse modo, pode (e deve) explicar aos que não sabem. As técnicas da etnografia exigem isso. Fez um verdadeiro trabalho de campo.
O que se torna desafiador, ou provoca alguns questionamentos no livro, prende-se, sobretudo, com as canções de trabalho e a “obscenidade” nelas presente. As canções de trabalho entre os povos do sul de Moçambique, especificamente os tsonga, são também matéria tratada por [Henri-Alexadre] Junod (1960), no seu Tomo II, intitulado Usos e Costumes dos Bantu. Este autor faz referência a actividades desenvolvidas pelos povos tsonga, nomeadamente: na machamba, ao pilar milho, durante as viagens, ao remar, ao transportar carga em qualquer outro lugar ou no cais, entre outros exemplos. Afirma ele que os «indígenas cantam e gritam» em tudo o que fazem, chegando, por vezes, apenas a emitir onomatopeias e não a cantar exactamente. Para ele, isso ajuda, sobretudo, na prossecução de trabalhos monótonos. E destaca a importância de se recolher mais cânticos dessa natureza.
Loforte aborda, no seu livro, a dura realidade «dos carregadores» e pude observar, nos textos que constam da primeira parte da obra, que, sem desprimor de outros tipos de trabalhos e das canções a eles ligados, nas actividades para as quais se exige muita força e coragem, o valor terapêutico da canção é de extrema necessidade, apoiando o comprometimento dos sujeitos integrantes. O facto curioso tem a ver com o tipo de linguagem utilizada que é considerada, por alguns, como obscena. Entretanto, há autores como Emma Byrne (2018:12), no seu livro Dizer Palavrões Faz Bem: A Incrível Ciência do Calão, que explicam o quanto o acto de utilizar obscenidades em trabalho de equipa fortalece o grupo e contribui para a sua produtividade. Além disso, em seu entender, o recurso a esse tipo de linguagem também pode remeter para alguma decepção ou desalento que o trabalhador/cantor terá sobre si próprio.
No livro de Loforte, o texto O Que Muda o Batelão relata um momento de travessia de batelão, cuja navegação requer esforço, sincronia, desprendimento e alguma coragem. Até porque a navegação era, segundo ele, feita por ‹‹falsos marinheiros››, que eram presidiários ou submetidos ao xibalo, condenados a realizarem aquele trabalho como cumprimento das suas penas. Então, para exorcizarem os seus medos, a sua dor e o seu sofrimento recorriam à mais “crua” linguagem.
Esse tipo de canção tem características universais, similares às chamadas cantigas trovadorescas galaico-portuguesas, as satíricas (criadas por populações simples/humildes, com intuito de fazer crítica social). Deste grupo, fazem parte as designadas cantigas de «escárnio e maldizer››. As de ‹‹escárnio›› são compostas por sarcasmo opaco ou obscuro e as de “maldizer” condenam abertamente o acontecimento ou fenómeno em causa. Este tipo de canção é marcado, também, por diálogos. Há, neste livro, canções que se podem considerar como sendo de ‹‹maldizer››, sobre governos e políticas vigentes.
Não sendo do grupo das cantigas que exigem força e coragem, mas das ‹‹de carregar›› e de trabalho, Loforte traz-nos uma outra de cariz sarcástico, onde se deduz a existência de um diálogo típico das manifestações artísticas de que tenho vindo a falar. É o caso das «canções de ninar», realizadas em trabalho de apoio a quem esteja na lavoura. É uma cantiga feita por alguém que carrega uma criança ao colo, em apoio à mãe desta, que se encontra a lavrar numa machamba. Não há, no caso, um palavrão, mas existe sátira, escárnio, e até se troça de uma tia, esposa do tio materno de alguém (no caso, da criança). Na cultura macua, ensina-nos Loforte, há ciúmes em relação à tia, esposa do tio materno. A sua existência subalterniza os sobrinhos, que teriam o carinho do tio, caso ele não fosse casado.
Há, assim, através das vidas cantadas, o esclarecimento de que a música atravessa todos os momentos da vida em sociedade, contextualizando os fenómenos, social e historicamente. Parte do título deste livro é «vidas cantadas»; ele não aborda, apenas, canções de trabalho, como já afirmei. Loforte «canta a vida» no geral. E, no que às classes humildes da sociedade diz respeito, devo acrescentar que remetem para a crítica social de várias formas e não só de modo satírico. O autor faz ainda outras referências, como o caso da utilização de enigmas destinados a desaprovar o governo. Alguns são irónicos, difíceis de compreender se não se fizer parte da cultura do objecto narrado.
... ao ensino dos ‹‹saberes locais
Loforte reflecte, também, sobre a igualdade da essência humana. A dado momento da leitura do livro, encontramos o texto «Saloias e iguais às nativas». O seu teor demonstra, claramente, que as necessidades biológicas dos seres humanos, sejam eles de que etnia forem, são exactamente as mesmas. A canção alude ao facto de que, seja de que categoria ou classe social for uma mulher, ela deixa a casa dos pais, partindo para o seu lar matrimonial, para suprir necessidades fisiológicas ligadas ao acasalamento, ou seja, para ter sexo; daí a canção em ronga e nessa cultura, referir, grosso modo: saíste da casa dos teus pais por causa ‹‹daqui, daqui››, sendo que aqui é menção directa à parte púdica da mulher, que é apontada enquanto se canta. No que tange ao português e à cultura portuguesa, a analogia é feita a partir das expressões «Ora zus, trus, trus / Ora chega, ora chega, chega / Ora zas, trás, trás! / Ora arreda lá p’ra trás!”, da cantiga Indo eu a caminho de Viseu»› (cfr. pág. 69).
Há outros registos que podem ser encontrados na obra e que não cabem neste espaço, no qual desejo, apenas, celebrar o contributo dado por Loforte para a promoção das culturas moçambicanas e no sector de educação, que iniciou, em 2003 o ensino dos ‹‹saberes locais››.
Importa ainda referir que, a par da marrabenta, as músicas de trabalho tinham sido censuradas pela sua linguagem «sensual» e «erótica”» Mas vale registá-las, cantá-las e dançá-las por serem marca das identidades moçambicanas. A cultura de um povo é caracterizada pelo seu sagrado e pelo seu profano, até porque, como se diz em Eclesiastes 3:1-8, «Tudo tem o seu tempo determinado […]»! Assim é a Humanidade e a sua História!
Transcrição, com a devida vénia, do jornal digital 7Margens do dia 22/06/2023. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.