«Imediatamente pressentimos que a sua poesia é um lugar ao qual chegamos.»
Atravessa toda a poesia de Paula Tavares (Ana Paula Tavares) um apelo à Mãe, uma entidade de consciência perfeita, que só pode ser comparada à própria natureza ou ao que se espera de um deus, de uma deusa. A sua poesia de toda a vida é de uma coerência impressionante e não se esbanja. Cada verso é uma dádiva que não se vulgariza, por isso é rara, um punhado de poemas que funciona como coleção de clarões, de puras visões que se distinguem de tudo o resto.
Eu sei que sabemos quase nada de África, de sua profundidade cultural, de sua imaginação. As mais das vezes, inventamos e seguimos por padrões levianos e preconceitos, muito porque não dominamos suas verdadeiras crenças e costumes, não reconhecemos qualquer paridade aos seus saberes, que sempre nos aparecem como lendas de povos extintos, rasurados pela opressão do convívio com povos de outros continentes, nomeadamente o europeu.
Por causa disto, um poema de Paula Tavares pode parecer-nos uma língua antiga que nos custa acreditar ser falada ainda. E todos os poetas são estrangeiros e propendem para seu próprio mundo, mas o que há em Paula é mais adiante, é uma expressão de uma delicadeza inacreditável que, afinal, se faz de sangue, o corpo sempre em uso e em risco, a terra e seus bichos presentes, os ciclos de vida e morte como normalidade sem assombro.
Imediatamente pressentimos que a sua poesia é um lugar ao qual chegamos. É impossível avançar verso a verso sem a impressão de caminhar terra fora numa paisagem que nos fascina e assombra, e que sabemos ser África; mas sobre África entendemos nada, tendemos a lidar como incrédulos, atónitos, visitantes no espaço mas também num tempo que parece sempre impreciso, sem medida, sem nome.
Dificilmente, para nós, europeus, o que é de África tem nome. Somos exteriores ao seu mistério. Ignoramos quase tudo, desde logo porque historicamente não agimos por paridade. E, pensando que poderíamos acabar dominando, é verdade que apenas nos conseguimos encerrar de fora daquela fortuna, de fora da profundidade cultural do continente onde tudo é primordial.
O modo como escreve é sempre devoção e crua ancestralidade.
Digo assim porque a beleza encantatória que atinge não prescinde da frontalidade, é sempre presente uma carne feita que se fere e sacrifica, que se persegue e usa, que tem prazer e que se multiplica, que encontra o outro e se suja na sua mais profunda normalidade.
O que há é a aceitação do animal que somos, privilegiado pela espiritualidade que, em todo o caso, também não podemos retirar aos demais. Quero dizer, aos outros bichos e plantas que, por estarem vivos, parecem procurar provar que também eles têm um propósito, ou uma justiça, que transcende largamente a fisicalidade, que vai para muito depois da simples contingência de não poderem cabalmente comunicar connosco para nos explicarem suas crenças, seus saberes e pressentimentos.
Na poesia de Paula Tavares tudo é capaz de exercer a transcendência. Tudo é digno, ao menos, de que suspeitemos de ser bastante mais profundo do que fazemos crer. Digo fazemos para dizer sobretudo quem não cumpre a cultura de África, a intensa ligação com o que ainda é por ter nome.
Paula Tavares é uma das maiores e mais deslumbrantes vozes da poesia em português. Seria fundamental distingui-la, celebrá-la, como merece. Julgo que estamos tão longe de lhe sermos justos. A sua Poesia Reunida está publicada pela Dom Quixote, num objeto elegante, lindíssimo, e sinto que anda discreta nas livrarias, lenta.
Um livro que anda lento talvez porque a contemporaneidade esteja obstinada com tudo menos a origem. Com tudo menos o que ainda representa aquilo que é natural, aquilo que é essencial. Mas é tão importante que se leia. Que se aprenda com Paula Tavares o infinito da maravilha: «Um homem vai bêbado de seu próprio sangue/ e mal ouve a voz de anunciar princípios.»
Cf. participação de Ana Paula Tavares no podcast "O poema ensina a cair" (03/03/224).
Crédito da imagem: "Ana Paula Tavares. A carne mais desprotegida", Sol, 03/12/2024.