Maria Regina Rocha
«Para que serve um “acordo ortográfico”? Para unificar a ortografia de povos que falam a mesma língua. Ora, com este acordo, a ortografia da Língua Portuguesa não se unificou», sustenta Maria Regina Rocha, neste artigo, saído no jornal Público de 19-01-2013. O texto que aqui se transcreve é a versão que a autora entendeu ficar em linha no Ciberdúvidas.
O Acordo Ortográfico está em causa. Instituições e publicações há que o aplicam; outras, que o rejeitam. O grande público contesta-o, e a esmagadora maioria dos cidadãos não consegue compreender o que se está a tentar fazer à Língua Portuguesa.1
Efectivamente, embora genericamente as pessoas estejam contra esse acordo, infelizmente a forma como se extremaram posições levou a que, num determinado momento, quem tinha o poder político lhe conferisse força de lei, sem uma atenta e lúcida reflexão sobre o mesmo e as suas gravíssimas implicações, sobretudo de natureza linguística e cultural, com repercussão no ensino e no domínio da língua.
Como ainda estamos em fase de transição e as leis são os homens que as fazem, esperemos que as razões serenas e lúcidas se imponham e façam com que aqueles que representam o povo legislem de acordo com o supremo interesse do país e da língua portuguesa, seja ela falada onde for.
Lembro apenas, como precedente, que o Acordo Ortográfico de 1945 foi nessa data assinado por Portugal e pelo Brasil, que o Brasil o tentou aplicar durante dez anos e que, em 1955, rendido à especificidade do registo ortográfico da variante do Português do Brasil, revogou esse acordo. Assim, se Portugal tomar a iniciativa de reflectir e, com razões ponderosas, reformular o texto do Acordo actual, não fará nada de inédito nem beliscará as relações entre os países envolvidos. Aliás, será de referir, ainda, que, recentemente, o próprio governo brasileiro anunciou que vai adiar a obrigatoriedade da aplicação do acordo para 2016…
Focando, então, o Acordo actual, em primeiro lugar, deverei dizer que uma pessoa com formação linguística naturalmente que não estaria, à partida, contra um acordo ortográfico. E deverei dizer, ainda, que houve, neste acordo, tentativas (embora não totalmente eficazes) de resolver algumas questões ortográficas relativamente à grafia de novas palavras, concretamente no que diz respeito à utilização do hífen.
No entanto, este acordo enferma de um grande pecado original: não alcança minimamente o apregoado objectivo da unidade na ortografia.
Para que serve um «acordo ortográfico»? Para unificar a ortografia de povos que falam a mesma língua. Ora, com este acordo, a ortografia da Língua Portuguesa não se unificou. Tentei obter resposta a uma pergunta simples: quantas palavras se escreviam de forma diferente no Brasil em comparação com a forma como as mesmas palavras se escreviam em Portugal e nos restantes países de Língua Oficial Portuguesa antes do Acordo e depois do Acordo? Não consegui obter uma resposta objectiva da parte de defensores do Acordo Ortográfico. Pergunto: parte-se para a tentativa de aplicação de um acordo ortográfico sem se saber claramente quantas palavras é que mudam na ortografia?
Assim, procurei a resposta, consultando o «Vocabulário de Mudança» disponibilizado no Portal da Língua Portuguesa (http://www.portaldalinguaportuguesa.org/).
E, considerando a informação aí veiculada, a resposta é a seguinte (contagem feita manualmente): antes do Acordo – e exceptuando as palavras com alteração do hífen, as palavras graves acentuadas no Brasil e não em Portugal (como idéia–ideia) e as palavras com trema (pelo seu número residual e por tais situações afectarem sobretudo a ortografia brasileira) –, havia 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (por exemplo, facto–fato), havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais (por exemplo, abstracto e abstrato resultam em abstrato), e havia 1235 palavras iguais que se tornam diferentes.
Está a ler bem: com o Acordo Ortográfico, aumenta o número de palavras que se escrevem de forma diferente!
Isto é, havia 1235 palavras que se escreviam da mesma forma em Portugal e no Brasil que, com o Acordo, mudam, a saber: 190 ficam com dupla grafia em ambos os países (por exemplo, circunspecto e circunspeto); 57 ficam com dupla grafia mas só em Portugal (por exemplo, conceptual e concetual, que no Brasil se escreve conceptual, mantendo a consoante p); 788 mudam para uma das variantes que existem no Brasil, por vezes a menos utilizada ou a considerada mais afastada da norma-padrão (por exemplo, perspetiva: em Portugal, só se admite esta forma – sem c –, mas no Brasil admitem-se duas, perspetiva e perspectiva, sendo esta última a preferencial); finalmente, 200 mudam para uma até ao momento inexistente e que passa a existir apenas em Portugal (por exemplo, receção, que no Brasil só admite a forma recepção, que passa a não ser possível em Portugal).
Esta última situação é a mais aberrante: são 200 as palavras inventadas, que não existiam e passam a ser exclusivas da norma ortográfica em Portugal. Alguns exemplos: em Portugal, com o Acordo, passa obrigatoriamente a escrever-se aceção, anticoncetivo, conceção, confeção, contraceção, deceção, deteção, impercetível, enquanto no Brasil se escreve obrigatoriamente acepção, anticonceptivo, concepção, confecção, contracepção, decepção, detecção, imperceptível. O problema diz, pois, respeito sobretudo à grafia das palavras que contêm as vulgarmente chamadas «consoantes mudas». Segundo os referidos dados do Portal da Língua Portuguesa, com o Acordo Ortográfico, no que diz respeito às palavras que mudam, no Brasil continuam a escrever-se 1235 palavras com essa consoante etimológica (978 de dupla grafia e 257 que se escrevem só com a manutenção da consoante), enquanto em Portugal e nos restantes países de língua oficial portuguesa, esse número desce para 247, e todas com dupla grafia!
Leu bem: no Brasil, são 1235 as palavras em que se mantém essa consoante, enquanto em Portugal e nos restantes países de língua oficial portuguesa são apenas 247!
Em Portugal, altera-se a ortografia fazendo desaparecer as referidas consoantes e, afinal, no Brasil, essa ortografia de cariz etimológico mantém-se!
Não vou aqui falar da questão da dupla ortografia e de fragilidades e incorrecções presentes nos textos referentes ao Acordo Ortográfico, que têm um efeito negativo no ensino, na aprendizagem e no domínio da Língua Portuguesa (tal poderá ser objecto de outro artigo).
Aqui apenas estou a referir como falsa a propalada unidade ortográfica!
E faço um apelo aos decisores políticos para que analisem cuidadosamente a situação: ninguém se pode escudar na ignorância dos assuntos sobre os quais toma decisões, pois a História não lhe perdoará.
Cf. Números da aplicação do Acordo Ortográfico em Portugal
in jornal Público de 19-01-2013.