O jornal "Estado de S. Paulo", na sua edição de domingo, 2 de Janeiro de 2005, no caderno Vida, publicou um completíssimo trabalho sobre o relançamento do Acordo Ortográfico, da autoria dos jornalistas Lisandra Paraguassú, Beatriz Coelho Silva e Eduardo Martins, que a seguir se transcreve, com a devida vénia:
«Depois de 14 anos – escreve a jornalista Lisandra Paraguassú –, a reforma ortográfica do português pode estar, finalmente, próxima de entrar em vigor. Aprovada em 1990 pelos oito integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), até hoje a reforma, que pode abolir o trema em tranqüilo e o hífen em pára-quedas (que ainda perderia o acento), ainda não saiu do papel. No Brasil, todos os passos burocráticos para a ratificação do acordo já foram dados. Estão a caminho em Portugal e Cabo Verde. Conforme um acerto feito em julho, a ratificação por parte desses três países será suficiente para implantar a reforma. Os outros cinco países - Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste - poderão aderir depois.
A importância da reforma ortográfica parece difícil de se perceber à primeira vista. Afinal, é perfeitamente possível entender o português escrito em qualquer um dos países e as mudanças não chegam às expressões populares e gírias, que realmente fazem a diferença. Mas os defensores da reforma - entre eles o acadêmico Antônio Houaiss, já falecido, que participou da preparação da nova ortografia - apresentam um ponto indiscutível: hoje, o português é a única língua ocidental de alguma importância no mundo a ter duas ortografias oficiais, a portuguesa e a brasileira, sem contar as versões de outros países. Inglês, espanhol, francês, alemão têm hoje uma grafia apenas.»
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Num outro texto, a jornalista Lisandra Paraguassú escreve sobre as contrariedades na afirmação internacional do nossso idioma comum em resultado da inexiustência, até hoje, de uma ortografia comum aos oitos países da CPLP - ao contrário, por exemplo, do que se passa com o espanhol:
«Essa diferença dificulta, por exemplo, que o português possa ser uma das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU). Também cria problemas para o ensino do português como língua estrangeira.
Mas o maior problema apontado por especialistas é que a inexistência de uma grafia comum impede a livre circulação de livros e material didático entre os oito países. Hoje, uma publicação portuguesa tem de passar por uma revisão para ser lançada no Brasil, enquanto um livro de um autor latino-americano pode ser publicado ao mesmo tempo, com a mesma edição, na Espanha e em toda a América de língua espanhola - caso da mais recente obra do colombiano Gabriel Garcia Marquez, 'Memórias de Mis Putas Tristes'.
"Essas dificuldades atrapalham principalmente os países mais pobres. O Brasil, por exemplo, tem vários acordos de cooperação para alfabetização nos países africanos. Como a grafia é diferente, todo o processo é dificultado. O material didático ensina com uma ortografia diferente da usada no país, mas fazer uma nova versão fica muito caro", explica Carlos Alberto Xavier, assessor especial do Ministério da Educação (MEC) que acompanhou toda a negociação da reforma, desde 1990.
Outro exemplo é o de publicações científicas. Nessa área, a unificação da grafia permitiria uma circulação maior de informações de tecnologia entre os oito países.»
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Um terceiro texto deste trabalho do "Estado de S. Paulo" aborda a importância do Brasil na concretização, finalmente, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa:
«Quando foi feito, em 1990, o acordo da reforma ortográfica previa a ratificação de todos os países para entrar em vigor. Em julho de 2004, dada a dificuldade de alguns membros obterem as condições políticas para aprová-lo, foi decidido, num encontro em São Tomé e Príncipe, que bastariam três países conseguirem a ratificação em seus Congressos. O Brasil já o fez em 1995. Cabo Verde e Portugal estão em processo final e São Tomé já começou a encaminhar o processo. Por isso, a reforma pode passar a vigorar em pouco tempo.
Para isso, no entanto, o Brasil terá de fazer a revisão de toda a sua ortografia. A primeira mudança ocorrerá nos documentos oficiais. A Academia Brasileira de Letras (ABL), encarregada de revisar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, terá de fazer a revisão das cerca de 300 mil palavras da língua.
A sorte dos brasileiros, no entanto, é que as mudanças não afetam tanto a nossa ortografia quanto a portuguesa. Com mais 170 milhões de habitantes dos 215 milhões que formam a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o peso brasileiro é grande. Nada menos que 79% da população dos oito países onde o português é a língua oficial.«
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Uma outra jornalista do "Estado de S. Paulo", Beatriz Coelho Silva, assina um quarto texto, este sobre o movimento pró e contra, no Brasil, do Acordo Ortográfico. E, para isso, falou com o filólogo e gramático Evanildo Bechara, que é a favor da unificação ortográfica da língua portuguesa, e com editores brasileiros, no pólo oposto:
«As diferenças ortográficas não impedem a circulação de livros brasileiros nos países que falam português, mas a unificação da língua facilita sua disseminação entre outros povos. A opinião é do acadêmico e filólogo Evanildo Bechara."Essa unificação aconteceu com o espanhol, o italiano e, em menor escala, com o alemão", explicou. "Com o francês e o inglês não, porque são línguas hegemônicas, indispensáveis nas relações internacionais. Mas isso trouxe um problema: como não há correlação entre a grafia e a fonética, a mesma sílaba em inglês ou francês tem várias pronúncias, todas corretas." Bechara, que também é membro da Academia Portuguesa de Ciências, ressalta que essa unificação, à qual os brasileiros dão tanta importância, não parece ser prioridade dos portugueses. "Nos contatos com meus colegas de lá não se fala muito nisso."
Os editores brasileiros estão atentos porque a unificação acarreta gastos na reedição de clássicos. Por outro lado, obras de escritores consagrados, como o português José Saramago, o angolano José Eduardo Agualusa e o brasileiro Jorge Amado, já são publicadas com a ortografia dos autores.
"Os direitos de publicação, a distribuição, o vocabulário e sintaxe entravam mais a exportação de livros. Na ortografia é possível haver uma pacificação em cinco ou dez anos, o que não acontece com o sentido das palavras, que muda regionalmente nas línguas vivas", diz o presidente da Nova Fronteira, Carlos Augusto Lacerda.
"A cessão de direito de publicação se dá por língua e território. Posso publicar um autor em português só no Brasil. Para os demais países o contrato é outro", completa o presidente do Grupo Record, Sérgio Machado. Ele vê desvantagem na mudança. "Vai implicar custos para adaptar textos clássicos à nova grafia e não resultará em ganhos, pois a exportação é parte ínfima do nosso negócio. Na reforma ortográfica de 1971, aumentou 20% o custo dos livros." A diretora da Gryphus, Gisela Zingoni, concorda. "Para literatura não faz diferença. Quem compra esses livros tem cultura para entender a ortografia portuguesa", diz. "Talvez para livros didáticos haja problema."
Já para o diretor da Lucerna, Evanildo Bechara, que é filho do acadêmico, a unificação facilita parcerias, mas não resolve o caso dos livros infantis. "As palavras têm significado diferente e as crianças daqui não entendem os textos de lá e vice-versa", explica. "Aqui se fala 'fiz um passeio legal' e lá, 'um passeio gira'."
Para o presidente do Grupo Campus, Cláudio Rotmüller, o acordo beneficia mais Portugal que Brasil. "Enquanto somos um mercado de 170 milhões de pessoas, eles têm só 14 milhões."»
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Um último texto deste vasto tabalho do "Estado de S. Paulo", da autoria do jornalista Eduardo Martins, debruça-se sobre o que vai mudar – mas também sobre o que não se alterará na ortografia do português (inclusive pela dupla grafia) –, segundo o texto que consagrará a reforma ortográfica da Língua Portuguesa:
«O pretexto era unificar a grafia vigente nos dois lados do Atlântico, para facilitar a ação conjunta do Brasil e de Portugal nos organismos internacionais. No entanto, o propósito não só deixou de ser atingido como a semi-reforma (palavra que vai virar "semirreforma") terminou, ao contrário, por sacramentar diferenças irreconciliáveis na escrita dos dois países.
Elimina-se o trema, mudam-se as normas para o uso do hífen, introduzem-se novamente no alfabeto as letras k, w e y (algum dia saíram dele?) e revogam-se alguns acentos.
A título de concessão, Portugal abre mão das consoantes mudas (Egipto vira Egito e objecto passa a objeto, como no Brasil), mas as conserva caso sejam pronunciadas (indemnizar e facto, por exemplo). O país mantém o som aberto na sílaba tônica seguida de m e n, como em prémio, económico, António e género, enquanto o Brasil escreverá esses vocábulos da maneira a que estamos habituados: prêmio, econômico, Antônio e gênero.
Esse parágrafo deixa clara a ilusão embutida na reforma: as palavras de dupla grafia superam as 2 mil e fazem parte, na quase totalidade, do universo das cerca de 10 mil utilizadas (com algum exagero) na linguagem jornalística ou técnica, por exemplo.
Veja abaixo algumas das principais modificações previstas pela reforma:
Alfabeto. O k, o w e o y voltam a fazer parte do alfabeto.
Dupla grafia. Portugal mantém o acento agudo no e e no o tônicos que antecedem m ou n, enquanto o Brasil continua a usar circunflexo nessas palavras: académico/acadêmico, génio/gênio, fenómeno/fenômeno, bónus/bônus.
Letras mudas. Como principal concessão ao acordo, Portugal elimina as consoantes não pronunciadas: ação (em vez de acção), batizar (em vez de baptizar), direto (em vez de directo), adotar (em vez de adoptar), objeção (em vez de objecção). Se a letra for pronunciada, porém, poderá ser mantida, como em facto, sector, carácter, amnistia, sumptuoso. O idioma dos dois países diferirá ainda em formas como excecional e excepcional, conceção e concepção, perentório e peremptório, assunção e assumpção.
Trema. Desaparece no u pronunciado após g ou q: linguiça, aguentar, frequente, consequência. Persiste, porém, nas palavras derivadas de nomes estrangeiros: mülleriano (de Müller), hübneriano (de Hübner).
Acentuação. a) Extingue-se o acento nos ditongos éi e ói abertos das palavras paroxítonas (a sílaba forte é a penúltima): ideia (e não mais idéia), assembleia, apoia, joia. O acento se mantém quando o ditongo está na sílaba final e vem seguido ou não de s: fiéis, herói(s), corrói. Repare na confusão: herói conserva o acento e heróico o perde e se transforma em heroico. b) O acento diferencial permanece em pôde (para diferenciá-lo de pode, com som aberto) e pôr (por causa de por, preposição), e se torna opcional em fôrma. Desaparece, porém, nas outras palavras em que existia. Assim, pára (verbo), péla (verbo e substantivo), pélo (verbo), pêlo (cabelo), pêra e pólo passam a para, pela, pelo, pera e polo. c) As palavras terminadas em ôo, ôos e êem perdem o circunflexo: enjoo (e não mais enjôo), voos, creem (e não mais crêem), deem, leem e veem.
Hífen. a) Mantém-se nas palavras compostas: arco-íris, norte-americano, ano-luz. O sinal cai, contudo, em compostos nos quais "se perdeu a noção de composição". E o projeto cita paraquedas e paraquedista (hoje, pára-quedas e pára-quedista). Será difícil descobrir quais são os demais. b) Na prefixação, existe hífen sempre antes de h: semi-hospitalar, geo-história, sub-hepático. c) Se o prefixo ou pseudoprefixo termina por vogal e o elemento seguinte começa por r ou s, duplica-se a consoante: contrarregra, extrarregular, antissemita, ultrassonografia. d) Se o prefixo termina por vogal igual à vogal inicial do segundo elemento, existe hífen: anti-inflacionário, micro-onda, mega-ação, arqui-inimigo, contra-almirante, auto-ônibus. e) Se as vogais finais e iniciais forem diferentes, não haverá hífen: antieconômico, extraescolar, autoaprendizado, contraindicado, intraocular. f) Hiper, inter e super têm hífen antes de outro elemento iniciado por r: hiper-reativo, inter-relacionado, super-resistente. g) Circum e pan têm hífen antes de elemento iniciado por vogal, m, n e h: circum-escolar, circum-hospitalar, circum-murado, circum-navegação; pan-africano, pan-helênico, pan-mágico, pan-negritude. h) Ex e vice e os pouco usados sota, soto e vizo mantêm o hífen existente hoje: ex-presidente, ex-marido, vice-prefeito, vice-diretor, sota-piloto, soto-mestre, vizo-rei. i) Como atualmente, pós, pré e pró ligam-se com hífen a um segundo elemento "que tenha vida à parte": pós-graduação, pós-tônico, pré-escolar, pré-natal, pró-africano, pró-europeu. j) O texto assinala a inexistência de hífen nas locuções e cita expressamente: cão de guarda, fim de semana e cor de café, entre outras.»