Texto escrito para o Ciberdúvidas, em que o autor, contraditando os números apresentados por Maria Regina Rocha em “A falsa unidade ortográfica”, complementa o seu artigo “Para mal dos pecados de alguns, os números não mentem”, publicado originariamente no jornal Público de 25-02-2013. Nele se procede a uma quantificação mais pormenorizada da mudança que, com o Acordo Ortográfico, abrangeu as formas verbais, o hífen, as consoantes mudas e a acentuação gráfica.
Sou um homem curioso. Todos o somos, de uma forma ou de outra, caso contrário não pertenceríamos a esta espécie, ou sequer à ordem dos primatas. Mas a nossa curiosidade, como tantas outras coisas em nós, percorre caminhos diferentes. Nuns delicia-se com as últimas tricas políticas, noutros com o que acontece a seguir na novela ou na série de TV preferida, noutros nas sempiternas confusões da bola, e assim por diante. Em mim, sempre foi, desde miúdo, despertada pelo conhecimento, particularmente o de cariz científico. Dados, fenómenos, relações entre umas coisas e outras, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, das coisas da vida às coisas da nossa vida de gente humana que pensa e fala e pensa falando, tudo me desperta a curiosidade. E quando algo me desperta a curiosidade, investigo desde que para isso disponha de um mínimo de tempo e de meios.
Portanto, sendo um homem curioso, quando me apanhei com o belo do Vocabulário da Mudança (VdM) todo aconchegadinho numa folha Excel, não me limitei a fazer as contas gerais que apresentei no artigo que acabou por sair no Público. Não. Dissequei-o para ver que impacto têm em cada grupo de palavras as alterações trazidas pela nova ortografia. Falo aqui, em traços gerais — uma listagem exaustiva é demasiado aborrecida para um artigo deste género… mas publiquei-a no meu blogue — das que me parecem mais relevantes para a discussão em curso. Ou por outra: daquelas que precisam mais de pontos postos nos is.
Começando pelos verbos. O VdM, onde só constam palavras que sofreram algum impacto da nova ortografia, inclui apenas 178 verbos. Pouco mais que uma gota de água nessa parte do nosso léxico mas, se incluísse as formas flexionadas (que não inclui; todos os verbos estão no infinitivo), estes 178 verbos ramificar-se-iam em cerca de 10 mil palavras, pois o verbo típico gera mais de 50 formas vocabulares diferentes entre as suas várias pessoas e tempos. Portanto, é um grupo relevante de palavras, e convém saber se nele as tendências em termos de convergências e divergências são, ou não, diferentes das da generalidade das palavras presentes no vocabulário.
E o que descobri foi que sim, embora não exatamente da mesma forma. Os números são: dos 178 infinitivos verbais, são 70 os que tinham grafias divergentes e passaram a tê-la dupla, são 36 os que a tinham igual e mudaram para outra grafia igual, são 60 os casos de convergência e são apenas 12 os de divergência. A razão convergência/divergência é aqui só de 5:1, mas tanto os casos de convergência como os de divergência têm mais peso no total de verbos do que no de todas as palavras. Contudo, e isto convém sublinhar, a convergência bate a divergência por larguíssima margem. Assumindo, para facilidade de contas, que cada verbo se ramifica em 50 formas vocabulares, isto significa totais de cerca de 600 grafias divergentes, mas três mil grafias convergentes.
E na verdade, é isso o que acontece em boa parte dos grupos de palavras em que se pode subdividir o VdM. É isso o que acontece, por exemplo nas palavras em que o C emudece em toda a lusofonia ou só em alguns dos seus dialetos (numa proporção de mais de 6:1), as quais são em número de 1737, cerca de um quarto do vocabulário. Num conjunto tão numeroso de palavras, aquelas em que existe convergência também são numerosas: 557; as divergentes são-no bem menos: 84. É também isso o que acontece, e de forma ainda mais expressiva, nas mudanças relacionadas com o hífen onde, num universo de 927 palavras, há 85 que convergem e apenas 3 que divergem.
Só num grupo as divergências superam as convergências: nas palavras em que as fonéticas lusófonas — todas ou algumas — emudecem o P em sequências consonantais. Só aí, num conjunto de palavras que não ultrapassa as 315, encontramos apenas 16 casos de convergência para 136 casos de divergência. Estão aqui quase dois terços de todas as divergências geradas pela nova ortografia e presentes no VdM.
De resto, ou a convergência é praticamente total, como nas alterações relativas ao trema ou à supressão da acentuação em alguns grupos de palavras paroxítonas, ou a ortografia muda de forma praticamente idêntica em todo o português, como noutros grupos em que a acentuação é suprimida, ou então fica tudo como dantes, numa série de grupos que incluem o mais numeroso de todos: o das palavras com acentuação diferenciada na sílaba tónica, com uso do acento agudo do lado de cá do Atlântico e do circunflexo do lado de lá, embora, formalmente, ambas as formas passem a estar corretas na língua portuguesa como um todo.
Demasiados opositores à mudança cedem à demagogia fácil (para não lhe chamar outras coisas menos benévolas) de centrarem a análise nas divergências, escamoteando as convergências. Ao fazer a análise completa aos dados compreende-se porquê: se usassem os dados todos, a afirmação de que a nova ortografia não aproxima os usos ortográficos na nossa língua tornar-se-ia completamente indefensável porque pura e simplesmente é desmentida pelos números.
Na verdade, sempre que aparecem artigos, e até artigos técnicos publicados em revistas da especialidade, a só falarem de um dos lados da questão, deve ficar imediatamente posta em causa a honestidade intelectual do estudo e a seriedade técnica de quem o leva a cabo. Porque algo que é feito com honestidade e rigor não apresenta só um lado da questão. E em ciência (e a linguística pretende ser uma ciência) não se fazem estudos para provar pontos de vista. O processo é outro: põem-se hipóteses, testam-se essas hipóteses com os dados disponíveis, confrontam-se com outras hipóteses e se no fim houver mais do que uma hipótese a explicar igualmente bem os dados, escolhe-se a que for mais simples e mais testável. Estudos que afirmem que «se pretende com este estudo demonstrar que» são tecnicamente incompetentes (embora se saúde a honestidade de quem deixa os seus objetivos assim tão claros à partida), pois o que a ciência faz é testar se, não demonstrar que. As demonstrações, quando acontecem, são uma consequência dos testes, nunca um ponto de partida.
Dir-me-ão: ah, mas a própria existência de alguma divergência é sintoma do falhanço da mudança. E eu respondo: não, não é. É sintoma da natureza da mudança.
É que nenhuma moeda tem só uma face, compreendem? Por isso, não há mudança que não traga consigo algum aspeto negativo. O que se deve exigir de todas elas, para que haja progresso, é que os aspetos positivos suplantem os negativos, desejavelmente em muito. E isto aplica-se a todas. Às ortográficas, sim, mas também às políticas, às sociais, às económicas, às da vida privada de cada um de nós, etc., etc., etc. E etc.
E, no caso em apreço, é incontestável que a nova ortografia aproxima os usos ortográficos de quem se expressa em português. E isso é — e atenção, que se segue uma palavra intrinsecamente opinativa — bom.