Com ou sem Acordo Ortográfico, vamos ter, até ao fim do ano, o Dicionário da Academia. Tudo indica que se tornará um guia da lusofonia, a fim de normalizar para o utilizador comum o uso da língua portuguesa.
Cumpre-se a promessa de Pina Martins ao ser, mais uma vez, reeleito, em Dezembro de 1997, presidente da Academia das Ciências. "A publicação do Dicionário da Academia - acentuou numa breve declaração ao Diário de Notícias - é um dos objectivos prioritários do programa de actividades culturais a levar a efeito no decurso do próximo ano."
O projecto de um dicionário é quase tão antigo como a própria Academia. Fundada em 1779, destinava-se a "consagrar a glória e felicidade pública para adiantamento da instrução nacional, perfeição das ciências e das artes e aumento da indústria popular", conforme se afirma nos primeiros estatutos, tão marcados pelo espírito e a letra do Iluminismo.
Desde o início, a Academia procurou integrar-se nesta linha de orientação. Logo na primeira sessão pública, que se efectuou a 4 de Julho de 1780, sob a presidência do duque de Lafões, foi divulgada a introdução ao plano de um Dicionário da Língua Portuguesa. Era um objectivo que vinha ao encontro da acção programática de outras academias europeias: o Dictionnaire de l'Académie Française, com uma edição em 1694 e outra em 1718; e o Diccionario de la Real Academia Española, em seis volumes (1726-39).
Saiu, em 1793, o primeiro tomo do Dicionário da Língua Portuguesa. Incluía desde a letra A até Azurrar. E por aqui ficou. Durante cerca de 200 anos, por um motivo ou por outro, malograram-se os projectos de sucessivas gerações de académicos e filólogos.
Entretanto, iam aparecendo dicionários notáveis de língua portuguesa: o de António de Morais e Silva (1813), em dois volumes, que numa primeira versão (1789) tinha um âmbito reduzido, a Bluteau e ao Elucidário de Santa Rosa Viterbo; o Dicionário Contemporâneo de Língua Portuguesa de Caldas Aulete, completado por Santos Valente (1881), e o Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo (1899).
Os dois volumes do Morais, dizia-me António Houaiss, no Brasil, em casa de Plínio Doyle, são muito melhores do que o de Webster, considerado um modelo em matéria de língua inglesa e não só. Há pouco mais de 50 anos viria a ser ampliado em 12 volumes, por uma equipa de que fizeram parte José Pedro Machado, Augusto Moreno e Cardoso Júnior.
Recentemente publicaram-se novos dicionários, um deles de José Pedro Machado, primeiro através da Sociedade de Língua Portuguesa, depois editado pelo Círculo de Leitores.
Em 1976, a Academia das Ciências quis recuperar a ideia do Dicionário da Língua Portuguesa. Com outra metodologia, ficaria condensado num volume. Não ultrapassou a primeira letra do alfabeto, mas terminava com Azuverte (nome de um pássaro de Timor), em vez de se deter no famigerado Azurrar, que, desde Garrett até Rodrigues Lapa, deu origem a ironias esfuziantes e aos mais impetuosos e quentes sarcasmos.
Ao aproximar-se o II Centenário da fundação da Academia, foi aprovada, em 1988, a elaboração do Dicionário do Português Contemporâneo, organizado em moldes diferentes dos anteriores. Pina Martins sugeriu que se adoptasse a estrutura de Pierre Robert no Dictionaire alphabétique et analogique de la langue française (1953-1964). Jacinto Nunes, ao tempo presidente da Academia, apoiou a iniciativa. Malaca Casteleiro, professor da Faculdade de Letras, constituiu, em 1989, uma equipa. Quase dez anos depois, está concluído o trabalho, em que participaram elementos do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa e professores do ensino básico e secundário destacados pelo Ministério da Educação.
Trata-se de um dicionário-padrão da língua portuguesa, que vai contemplar, para cada palavra, não apenas os diferentes significados que ela pode assumir mas também os sinónimos para cada acepção; exemplos e abonações ilustrativos do seu funcionamento semântico e sintáctico e concorrentes privilegiados (por exemplo, com "pão" concorrem trigo, milho, centeio, cozer, etc.).
Procedeu-se, entretanto, durante oito anos, ao levantamento, nos principais jornais portugueses, de mais de quatro mil estrangeirismos de uso corrente. Segundo Malaca Casteleiro, cerca de 70 por cento são de proveniência anglo-saxónica; 25 por cento de origem francesa e outros cinco por cento de origens diversas. Em muitos casos, optou-se pelo aportuguesamento, com adaptação à estrutura fonética, morfológica e ortográfica do português.
Noutras circunstâncias as palavras são integradas com variação, como "equipe"/"equipa", porque estas coexistem nos utilizadores que fazem a norma. Noutros casos ainda mantém-se a forma de origem, como, por exemplo, em stop. A ideia foi a de aportuguesar, na medida do possível, e manter quando o aportuguesamento não pega, caso de self-service. Ainda na opinião de Malaca Casteleiro, não se deve cair em extremos de purismo sem aplicação real.
Um dos pontos mais controversos residiu na feminização das profissões, pois as mulheres já ascenderam à hierarquia militar e à chefia do Governo (a "primeira-ministro"-Maria de Lourdes Pintasilgo). O Estado-Maior do Exército defende "generalas", "coronelas" e "soldadas"... Enfim, cada palavra é e tem sido um problema.
Numa avaliação sumária, o dicionário possui 60 mil entradas lexicais, o que equivale, aproximadamente, a 180 mil palavras do português falado em Portugal, no Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau. E numa colheita através da obra de escritores dos séculos XIX e XX, portugueses, brasileiros e de outros países de língua oficial portuguesa.
Demorou nove anos a fazer, surgiu a partir da estaca zero e custou mais de meio milhão de contos pagos pela Academia, a Gulbenkian e o Governo, através do ministério da tutela e de outros organismos oficiais.
Isto não pressupõe o fim do trabalho. Um dicionário nunca está concluído. O Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências continuará em actividade. Para, como já advertiu António Morais e Silva, "ao leitor benévolo" alimpá-lo dos erros com que saiu e ampliá-lo em artigos e novos entendimentos dos vocábulos e frases.
Nesta coluna semanal, na crónica subordinada ao título "Desacordo ortográfico: até quando?" (5-7-98, pág. 22), terminávamos com estas observações: "Com a questão da Guiné ao rubro, a Cimeira da Praia não se debruçará, ao que tudo indica, no Acordo Ortográfico. Outros valores mais altos encontram-se agendados e deverão preencher as conversações. Mas, por uma dessas bizarras ironias do destino, quem nos garante que para evitar os pontos quentes não haverá uma derivante para o Acordo Ortográfico?"
Verificou-se a segunda hipótese. A Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que reuniu na cidade da Praia, em Cabo Verde, debruçou-se, afinal, sobre a questão. Aceitou a proposta do Brasil de um novo protocolo modificativo do Acordo Ortográfico assinado em 1990. Esta alteração diz respeito ao âmbito e ao processo de implantação do acordo, que pretende uniformizar o português escrito nos países da CPLP.
Até ao momento, ratificaram-no os governos de Cabo Verde e Portugal (em Junho de 1991) e do Brasil, mas só três anos depois, inviabilizando a aprovação em tempo útil e daí o protocolo modificativo. Como se sabe, o Acordo Ortográfico foi assinado em 1990 e deveria ter entrado em vigor em Janeiro de 1994. A partir de agora é necessário e urgente contactar os governos de São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e da Guiné-Bissau, a fim de saber quando resolvem depositar a ratificação na Assembleia da República.
Sem a formalização do Acordo o Dicionário do Português Contemporâneo sairá tal como está, ou seja, com a ortografia ainda em vigor em Portugal. Se, no entanto, se concretizar a aprovação, o texto será reajustado no sistema informático, consoante as normas estabelecidas. Morais deixou-nos o último dicionário português do século XVIII; Cândido de Figueiredo, o último dicionário português do século XIX; Malaca Casteleiro, o último dicionário português do século XX que se projectará no novo século e no novo milénio associado ao nome e às tradições intelectuais e cívicas da Academia das Ciências.
É razão para regressarmos ao princípio, ao pensamento que determinou a fundação da Academia das Ciências e permanece na divisa latina que adoptou: nisi utile est quod facimus stulta est gloria. Que, com o resto de latim que me ensinou nos Açores o notável e inesquecível José da Costa, atrevo-me a traduzir: se aquilo que fizermos não for útil, a glória será vã.
artigo publicado no Diário de Notícias do dia 20 de Setembro de 1998.