Não está em causa a importância do inglês mas a tendência para uma visão monolítica e imperial da sua importância.
Leio no último Expresso, de 10 de Novembro, que o ministro Mariano Gago, em encontro de professores, alunos, reitores e políticos de 27 Estados da União Europeia, realizado em Lisboa, terá proposto que o inglês se torne a língua oficial do segundo ciclo de estudos superiores segundo Bolonha, quer dizer do mestrado. Leio e não quero acreditar. Mas, a ser verdade, trata-se de algo de muito grave e chocante, que não pode ficar sem reparo.
Não está em causa, evidentemente, a importância do inglês. O que está em causa é a tendência para uma visão monolítica e imperial da sua importância.
Em primeiro lugar, aquela proposta contende com a própria ideia da Europa, assente na diversidade e na complementaridade de línguas e identidades nacionais. Não se vem mesmo defendendo que, para além da língua materna, os europeus deveriam conhecer duas, e não apenas uma, línguas estrangeiras?
Em segundo lugar, no que toca a Portugal, não é a língua portuguesa a língua oficial da República, como prescreve o art. 11.º da Constituição? Então em universidades e institutos politécnicos portugueses pode haver, ou haver generalizadamente, ensino em língua diferente do português? Mesmo com a, aliás, desejável presença de maior número de professores e alunos vindos de outros países, não vai continuar a imensa maioria de professores e alunos a ser constituída por portugueses? Professores portugueses vão ensinar em inglês a alunos portugueses? Tal roça o mais cerrado novo-riquismo.
Em terceiro lugar, não é o português a terceira ou a quarta língua europeia mais falada no mundo e a língua oficial de oito Estados, e, até 2049, de Macau? Como esquecer os laços com estes países, donde, justamente, vêm mais de 90 por cento dos alunos estrangeiros que frequentam os mestrados em Portugal? E como esquecer os esforços de tantos e tantos professores que, com sacrifício, em África e em Timor, ensinam português?
Em quarto lugar, justamente por a Europa se basear na diversidade e precisar da diversidade linguística para se distinguir, a mobilidade dos alunos, ao abrigo do Programa Erasmus Sócrates, tem estado sempre ligado à aprendizagem da língua do país de acolhimento como fonte de enriquecimento cultural e de compreensão entre os povos. E, assim, também deve ser com professores que não venham, simplesmente, fazer uma conferência. Estabelecer uma língua única no mestrado seria inverter completamente esta saudável linha orientadora.
Em quinto lugar, o ensino em inglês, em determinados cursos seria de todo em todo, inapropriado. Basta pensar nos cursos de línguas clássicas e românicas ou de Filosofia. Basta pensar no curso de Direito, sabido como é serem muito diferentes os esquemas conceptuais e as terminologias do sistema jurídico continental ou romano-germânico e do sistema anglo-saxónico.
Em sexto lugar, o mestrado, quando reduzido a dois semestres lectivos, está longe de se comparar com o mestrado científico introduzido entre nós — com êxito — desde 1980. Tendo passado a duração das licenciaturas a quatro ou a três anos, não é mais que um seu complemento. De resto, um pouco por toda a parte, já se vão reconhecendo os excessos e os malefícios trazidos por aplicações rígidas do processo de Bolonha.
Em sétimo lugar, a eventual proposta em causa, naturalmente dirigida a Bruxelas e se aí acolhida pelos órgãos da União Europeia, incorreria no mesmo pesado erro de tantos regulamentos e directivas de cunho uniformizador, sem prévio debate democrático e de mera justificação tecnocrática. Essa ânsia de uniformização "legislativa" (que nem sequer Estados federais conhecem) representa um desvio ao rumo originário e original da integração europeia.
P. S. – Infelizmente, já há poucas coisas que me causam espanto. Ao que me disseram, na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, as reuniões do conselho científico decorrem em inglês! Como é possível que um órgão administrativo de uma entidade pública portuguesa funcione sem ser em língua portuguesa?
in Público, 15 de Novembro de 2007