Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Comumente, ouço construções do tipo «fiz de tudo pra te ver, só que não deu tempo». Obviamente, vemos que tal locução substitui a conjunção porém ou outra qualquer adversativa.

Assim, gostaria, por gentileza, de saber se algum gramático já incluiu referida expressão em lista de conjunções?

Resposta:

No capítulo 15 da 5.ª edição do livro A Gramática para Concursos Públicos, além de registrar «só que» como locução conjuntiva adversativa, diz o gramático Fernando Pestana:

«Segundo os linguistas Ataliba T. de CastilhoSanderleia Roberta Longhin-Thomazi e os dicionários AuleteHouaiss – para citar alguns –, modernamente a expressão SÓ QUE vem sendo considerada uma locução conjuntiva adversativa, "que promove uma quebra de expectativa e introduz a informação mais importante no enunciado".» (p.464)

Por ser uma locução aparentemente nova, pode ser que, com o tempo, novas gramáticas a registrem.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Antes de qualquer coisa, quero aqui expressar meus agradecimentos aos responsáveis pelo sítio, bem como aos seus colaboradores, pois muitas vezes foi somente aqui que consegui obter esclarecimentos para várias dúvidas acerca do nosso querido português. 

A pergunta é em relação ao uso da conjunção pois em início de frase, que em minha vasta pesquisa, inclusive aqui neste sítio, trouxe-me respostas que afirmam não ser possível tal uso. Contudo, transcrevo aqui dois exemplos de Machado de Assis, dentre muitos que encontrei na obra deste autor, os quais atestam esse tipo de uso:

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo 15:

«Primeira comoção da minha juventude, que doce que me foste! Tal devia ser, na criação bíblica, o efeito do primeiro sol. Imagina tu esse efeito do primeiro sol, a bater de chapa na face de um mundo em flor. Pois foi a mesma coisa, leitor amigo, e se alguma vez contaste dezoito anos, deves lembrar te que foi assim mesmo.»

Quincas Borba, capítulo 6:

«– Humanitas é o princípio. Há nas coisas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível, — ou, para usar a linguagem do grande Camões: Uma verdade que nas coisas anda, Que mora no visíbil e invisíbil. Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?»

[O Dicionário Houaiss regista o uso de pois com o valor adversati...

Resposta:

O vocábulo pois empregado após um ponto (final, interrogativo, exclamativo) pode ter diferentes valores semânticos. Seu uso, como já constatado pelo consulente, é encontrado em registro culto (e não só em linguagem literária): uma consulta ao Corpus do Português atestará milhares de exemplos em linguagem jornalística luso-brasileira. Logo, não se pode falar em incorreção gramatical no seu emprego.

No entanto, cabe uma importante ressalva (e este é o ponto!): tal redação não é usual/comum em textos sujeitos a avaliação ou com alto grau de formalidade – em certames ou em textos oficiais, por exemplo –, caso em que a linguagem é naturalmente mais limitada pelo que se espera da prática nesses gêneros textuais.

Cumpre dizer, claro, que as intenções estéticas de um redator rompem qualquer limite para atender à finalidade comunicativa pretendida, de modo que um segmento como «As pretensões do governo federal dificilmente encontrariam adesão entre os deputados, pois, como sabemos, a oposição iria frear os avanços na economia almejados pelo Executivo» pode ter, propositalmente, sua pontuação alterada para ressaltar o conteúdo introduzido pela conjunção causal pois, como se atesta em «As pretensões do governo federal dificilmente encontrariam adesão entre os deputados. Pois, como sabemos, a oposição iria frear os avanços na economia almejados pelo Executivo». O uso de ponto antes da conjunção causal é um recurso estilístico com fins de realce do conteúdo do segmento introduzido por ela.

Para além disso, quando o pois é empregado com valor adversativo, naturalmente é antecedido de ponto finalizando período. Eis um exemplo: «Eles disseram que a explicação não tinha sustentação. Pois estavam errados, desde o princípio!».

Há ainda outro caso apresentado pelo gramático

Pergunta:

Em um período simples, posso transformar um adjetivo (adjunto adnominal) em uma oração subordinada adjetiva, por exemplo: «o menino alto chegou» – «o menino que é alto chegou»?

Da mesma forma, vocês podem me mostrar, através de exemplos, como transformar advérbios em orações subordinadas adverbiais?

Obrigado!

Resposta:

Eis alguns exemplos de locuções adverbiais transformadas em orações adverbiais*:

1. O candidato não conseguiu ir para o segundo turno por falta de popularidade = O candidato não conseguiu ir para o segundo turno porque não tinha popularidade.

2. Sem condições financeiras, pagou o bilhete mais caro. = Embora não tivesse condições financeiras, pagou o bilhete mais caro.

3. Antes da chuva, já havíamos desistido de sair de casa = Antes de chover, já havíamos desistido de sair de casa.

4. Sem dedicação, não passará na prova. = Se não tiver dedicação, não passará na prova.

Há, respectivamente, segmentos adverbiais de valor causal, concessivo, temporal e condicional – seja em forma de locução adverbial, seja em forma de oração adverbial.

Sempre às ordens!

 

* Pelo fato de o consulente ser brasileiro, julgou-se necessário (por razões de clareza didática) usar a metalinguagem teórica tradicional existente no atual ensino de gramática no Brasil.

Pergunta:

Gostaria de saber se o deslocamento do predicativo, da seguinte oração, para o início desta, desfaria a ambiguidade:

«Ela deixou a plateia emocionada.»

Resposta:

Supondo que o sujeito da frase seja uma cantora a fazer um espetáculo, a construção "Ela deixou a plateia emocionada" apresenta, pelo menos, duas possíveis leituras sintático-semânticas*:

I. A cantora estava emocionada quando se retirou do palco.

Sendo esta a leitura, o termo "emocionada" será analisado (na frase original) como um predicativo do sujeito.

II. Por causa de alguma atuação/desempenho da cantora, a plateia ficou emocionada.

Sendo esta a leitura, o termo "emocionada" será analisado (na frase original) como um predicativo do objeto.

Logo, se o termo "emocionada" fosse deslocado para o início da frase (Emocionada, ela deixou a plateia), poder-se-ia aplicar a ela as leituras feitas em I (predicativo do sujeito) e em II (predicativo do objeto), pois esse adjetivo pode se referir ao sujeito — leitura mais imediata — ou ao objeto — leitura menos imediata, mas igualmente possível.

A prova de que se aplica a leitura III é a seguinte: se substituíssemos "a plateia" por "os fãs", a frase — já com o termo deslocado — ficaria gramatical: "Emocionados, ela deixou os fãs". Trata-se dum deslocamento pouco comum, mas não incorreto.

Uma forma de desfazer a ambiguidade é a colocação do adjetivo entre vírgulas, logo após o sujeito: "Ela, emocionada, deixou a plateia". Neste caso, funcionaria apenas como predicativo do sujeito.

Sempre às ordens!

 

* Pelo fato de o consulente ser brasileiro, julgou-se necessário (por razões de clareza didática) usar a metalinguagem teórica tradicional existente no atual ensino de gramática no Brasil.

Pergunta:

Na oração «ele realmente fez um gol à Pelé», o «à Pelé» pode ser craseado subentendendo-se a palavra moda, ele realmente fez um gol à moda (ao jeito) de Pelé, como ocorre na expressão «móveis à Luís XIV»?

Obrigado

Resposta:

Sim. O raciocínio está correto.

A crase ocorre obrigatoriamente em construções assim, segundo nos ensina Celso Pedro Luft em seu livro "Decifrando a Crase", quando figura um adjetivo ou um nome próprio qual núcleo da locução, a saber:

– Filé à milanesa (à moda milanesa)

– Frango à parmegiana (à maneira parmegiana)

– Bacalhau à Gomes de Sá (à moda de Gomes de Sá)

– Gol à Pelé (à maneira de Pelé)

Por essa razão é que não há crase em "frango a passarinho" ou em "bife a cavalo" — afinal, passarinho e cavalo não são adjetivos nem nomes próprios nessas expressões.

Sempre às ordens!