«(...) O Camilo negro é o Camilo que trabalha como um negro, profissional das letras e de escândalos, a vida toda à procura duma tença que lhe vão recusando até o fazerem visconde, a pedido, estava ele quase cego. (...)»
I. «O criminoso é fácil de conhecer, porque tem buracos na cara». Assim o denuncia um «cavalheiro» do Porto, escriba e fariseu, hipócrita, para quem certamente a virtude, tal como o rosto de Camilo, se devia julgar tão-só pelas aparências, deste modo prestando involuntária homenagem a todos os vícios e deformidades que dão verdadeiro sentido à vida, à obra, ao talento e ao génio dum homem «coacto por forças misteriosas a fazer tudo o que faz».
Escreveu Aquilino que a desgraça de Camilo provinha toda da natureza física degradada em que encarnara o seu espírito sublime. Estatura física meã, corpo enfezado, cara esburacada. Tudo revestido, porém, de redingote, calças verdes, capa à espanhola, botas à Frederica com esporas, chapéu alto de aba redonda e lunetas defumadas – como o descreve Pascoaes. Impregnado também de notável erudição e prodigiosa fantasia, muitas taras de família, destreza literária excepcional, quase barroca, anseio de drama e de romance, de pecado e penitência. Com a pena de pato em riste ou, em alternativa, de chibata na mão. Tal um manajeiro de circo, como diz Aquilino. Um farsante genial, prestidigitador e bruxo. O bruxo de Ceide.
Quando o «cavalheiro» do Porto lhe denunciou os «buracos na cara», corria o ano de 1860 e andava Camilo a monte – como sempre andou a vida inteira – desta vez fugido aos aguazis, acusado de adultério com Ana Plácido, mulher do infeliz Manuel Pinheiro Alves. Predisposto, todavia, a entregar-se à justiça terrena e a escolher a cela que havia de ocupar, como manifesto proveito literário, durante 384 dias, tantos os que esteve preso na Cadeia da Relação. Onde anos antes, em 1846, experimentara, aliás por motivos idênticos – sensualíssimo arrebatamento por Patrícia Emília – as agruras e constrangimentos do cárcere. Tinha ele 21 anos. E era já efabulador consumado, vagabundo sensual, achado entre livros e perdido entre mulheres, politicamente reaccionário e espiritualmente anarquista, vivendo e escrevendo quase sempre ao deus dará. Além do mais, batoteiro, sedutor, eloquente e fecundo. Mas também penumbroso. Condenado a trabalhos forçados para angariar sustento. E, por isso mesmo, cheio de artimanhas, partes gagas, manigâncias e artifícios. «O deus do verbo hilariante e lacrimoso, esquelético e fúnebre, o truão suicida, dando um braço à paródia e outro, à morte…» – é Pascoaes, magnífico, a escrever sobre ele, O Penitente.
II. Bastardo e órfão educado por padres, segundo o modelo genuinamente ortodoxo, imputam-se-lhe influências literárias que remontam, sobretudo, à época brilhante da oratória eclesiástica. O próprio Camilo salienta, na linguagem de Frei Tomé de Jesus, a majestosa elegância e acrisolada pureza, assim como a naturalidade da paixão e do arrebatamento que se insinuam no desalinho do estilo. Nos sermões do padre António Vieira, Camilo sublinha a tamanha e tão variada opulência de cores, a adjectivação irrepreensível, a propriedade do epíteto, que é nele tão original, a ironia, o sarcasmo, «o que quer que fosse de mais avançada cultura, em um meio social de mais complicadas paixões». Vieira é, para Camilo, o único em que o patético não saiu contrafeito das convulsões da retórica: «o estudioso da vernaculidade assombra-se, e estuda-o com delícias»». Mas é o estilo do oratoriano Manuel Bernardes que Camilo mais admira: terso, claro, melodioso, elegantíssimo e também opulento, avantajando-se «na ductilidade, na brandura e nos raptos quando o arrebatamento lhe vem de seu natural». Bernardes é, para Camilo, o luminoso estilista: «afastou-se dos arcaísmos, e nacionalizou vocábulos peregrinos, derivados de línguas afins da nossa, da italiana e da espanhola; mas escolheu com tão bom discernir que todos medraram, e correm hoje incontestadamente portugueses»
E ao escrever tudo isto é como se fosse Camilo a fazer o retrato da sua própria prosa. Porque nenhum outro escritor, como ele e depois dele, enriqueceu de tal modo e fez progredir tanto a língua portuguesa, sublinhando e revelando todo o seu esplendor. Fialho de Almeida diz dele que «fez da língua dura dos cronicons um instrumento sonoro, maravilhoso, elástico e vibrante, exprimindo à nossa moda, fazendo chorar, fazendo pensar, fazendo rir…». Eça chama-lhe «o ardente satírico, neto de Quevedo, que põe ao serviço da sua apaixonada misantropia o mais quente e o mais rico sarcasmo peninsular». Aquilino e Pascoaes comparam-no a Balzac.
Camilo cultivou todas as formas e todos os estilos de escrita, vazando-as numa profusão de artigos de jornais, em folhetins a tantos réis por coluna, em dramas teatrais prolixos e exuberantemente ultra-românticos, em versos abundantes, em sátiras de uma contundência demolidora, em cartas que, diz Aquilino, são obras-primas de verve e de humor, em laboriosos trabalhos de historiografia, num prodigioso rol de novelas e romances. Das suas retortas literárias jorraram torrentes de prosa, por vezes enfática e vazia, como se fora um manajeiro de circo a mostrar as habilidades, quase sempre, porém, magnífica, a fervilhar de paixão ou a borbulhar de sarcasmo, ora dolorida, ora hilariante, extraordinariamente versátil e percuciente. Versejou a vida inteira, mas a melhor, a mais profunda e mais terrível poesia está na sua prosa das Memórias do Cárcere, do Amor de Perdição, da "Maria Moisés" ou das surpreendentes Memórias de Guilherme do Amaral. Causticou a escola naturalista ou «estilo novo» mas escreveu, mesmo quando só por paródia, magníficos romances realistas, como o Eusébio Macário, A Corja, A Queda dum Anjo ou A Brasileira de Prazins. Muitos duvidaram e duvidam, não sem razão, do rigor da sua historiografia, mas o Perfil do Marquês de Pombal é, sem dúvida, uma das suas obras-primas.
III. Camilo no confessionário: «Eu sou do passado: ficou-me lá o espírito; amo o tempo que foi; vivi então mil séculos num instante; amarguei-os, mas que importa? Tive duas paixões na minha vida: uma por um anjo que morreu; outra por um demónio que me matou». Pesa-lhe na consciência a indiferença com que deixou morrer desgraçada, em 1847, a sua jovem mulher, Joaquina Pereira de França, já trocada há muito pela mancebia com Patrícia Emília, que havia de abandoná-lo. Mas, palavras assim, escritas num arrebatamento ultra-romântico porventura sincero, bem podiam ter servido de epitáfio a Camilo, em campa rasa, 43 anos depois, se o cadáver do Visconde de Correia Botelho não tivesse ido parar, como ele queria, ao pomposo jazigo do seu amigo Freitas Fortuna, no cemitério da Lapa.
Camilo condoído de si próprio, a penar, gemebundo, a lamber feridas, achando-se traidor, já com lugar reservado no inferno, o demónio a cuspir-lhe nas lágrimas, o anjo a proibir-lhe a ascensão à «mansão dos mártires». Que melhor retrato da sua vida e aventuras, dos seus pecados sem conta, da sua prosa exuberante e torrencial, dos seus enredos fantásticos, mirabolantes e quantas vezes inverosímeis?!
Camilo é doido! Sobre ser bastardo, órfão, vagabundo sem eira nem beira, espalha-brasas, boémio, libidinoso, adúltero, cabotino, efabulador retinto, mitómano, subversivo, anárquico, trauliteiro, cínico, rancoroso, farisaico e tudo o mais que faz dele um «franco pecador» e um marginal, Camilo é doido e doido varrido! Pelo menos no sentido em que a loucura é ser insensato, leviano, pantomineiro, extravagante, excessivo e suicida. Aquilino fala da «anormalidade da sua índole» e chama-lhe mesmo «paranóico e infeliz», para o ilibar do «patíbulo moral». De resto, como ele diz, Camilo «nasceu espúrio, e a macaca da mais feia sina era congénita nele como uma geba. Tudo o que fizesse era achacado dessa monstruosidade. Menos em arte. A pena, qual varinha de condão, resgatava-o transitoriamente do miserando fado». É que, além de doido, Camilo é prestidigitador e bruxo. O vocabulário e a sintaxe são nele, tal como os enredos, naturais proezas de alquimista versado na «poesia dos pavores supersticiosos» apreendiada nos abismos alcantilados de Trás-os-Montes e nos espinhaços e escarpas da serra do Marão. Maneja a língua portuguesa como poucos, quase nenhuns, alguma vez o conseguiram ou hão-de conseguir…
Estão, portanto, os leitores avisados quanto ao génio, índole e costumes do nosso herói, morto há 125 anos por ele próprio, no dia 1 de Junho de 1890, às cinco em ponto da tarde, horas depois de ter desfechado o revólver no parietal. Nada recomendável, por isso mesmo, à ilustração dos jovens espíritos do nosso tempo, que todos queremos consensualmente moderados – Camilo diria «temperados» – e, sobretudo, modernos, pragmáticos, realistas, com o bestunto bem amanhado e o nariz apontado ao futuro!
IV. É que, ainda por cima, Camilo desancou uma instituição nacional, o Marquês, não o Divino mas o de Pombal, num formidável perfil que, como ele próprio reconhece, não pode agradar a ninguém, «nem aos absolutistas, nem aos republicanos, nem aos temperados». Sendo certo que temperados são aqueles «que se atemperam às circunstâncias do tempo e do meio» e «são os piores porque são mistos – têm três doses da bílis azeda dos três partidos» e «são a mentira convencional – a máscara». Actualize-se, pois, a terminologia e imediatamente se verá que sempre tem sido assim. O Marquês é simbólico, no Marquês não se toca, porque emblema histórico do luso progressismo e/ou da autoridade do Estado, consoante o partido que o enaltece. Ora, Camilo pôs o Marquês a ridículo e chamou-lhe «déspota» – como já Voltaire lhe chamara e havia de chamar-lhe António Sérgio. Denunciou-lhe «a limitada ciência e descultivado espírito» e, sobretudo, a ferocidade bestial, «a insofrida urgência sanguinária» que o impeliu a mandar enforcar a plebe no Porto e a queimá-la na Trafaria, a supliciar os Távoras com prodigiosos requintes de crueldade antiga – «a mobília da tortura não participou da influência reformatriz do Marquês» – e a submeter um «deplorável louco», o velhíssimo padre jesuíta Gabriel Malagrida, a «estrangulação pública e infamantíssima na Praça do Rossio». Camilo vai mesmo ao ponto de asseverar que o déspota «tinha cinquenta e três pedras do tamanho de grãos-de-bico no coração», invocando o testemunho – quanto aos pedregulhos e ao tamanho da víscera – do doutor José Correia Picanço, lente de cirurgia, que embalsamou o Marquês. Tudo isto por causa de uma estátua de bronze em perspectiva e dum centenário comemorado com grande charivari de trompões fortes. «Ó centenaristas, ó heresiarcas, ó inimigos do altar e do trono! se o Marquês de Pombal vos apanhasse, maganões!» – clamava ele. Cada país tem o Marquês que merece, é caso para se dizer. E foi o que Camilo disse, em Ceide, oito anos antes de se matar, num dos seus melhores livros negros…
Prosas negras, aliás, escreveu ele bastantes – o que não surpreende em quem até desenterrou cadáveres para lhes perscrutar as almas. Já aos 23 anos ele se atrevia e clamava: «Filhas que amais vossas mães, tremei, tremei de horror! Mães que amais vossas filhas, chorai, chorai de compaixão! Pais de família que me ledes, fazei por dar uma educação a vossos filhos, que não deixe remorso na hora tremenda em que vossas almas estiverem para voar à presença de Jesus Cristo!». O homem é doido, já se disse, e escreveu isto a propósito da dissoluta Maria José, «essa filha prostituta» que cortou a mãe às postas e lhe reconheceu a cabeça já desenterrada enquanto comia melancia com pão. Claro que o propósito era o de provocar escândalo divertindo o pagode, ao mesmo tempo que ganhava uns cobres bem necessários a subverter as velhas «regras do cordel».
O Camilo negro é o Camilo que trabalha como um negro, profissional das letras e de escândalos, a vida toda à procura duma tença que lhe vão recusando até o fazerem visconde, a pedido, estava ele quase cego. E ele que tanto implorou: «É preciso que eu tenha alguma coisa que me dê folga ao trabalho de imaginar». É terrível mas é verdade. Foi condenado a imaginar a vida inteira, e era tanta a imaginação, que primeiro foi cegando até que se matou. A prosa de Camilo está cheia de desgraçados com o cérebro vazio e o coração cheio de asneiras. Camilo matou-se exactamente ao contrário, com o coração vazio e o cérebro cheio de asneiras…
V. Mas o que Camilo, sempre truculento e excessivo, mais afeiçoava – além das mulheres e das feras, «contanto que irracionais» – era o varapau, o pau de marmeleiro, o célebre fueiro de carvalho-cerquinho. No Perfil do Marquês de Pombal, dedica ele um capítulo inteiro à «paulada e pedrada», referindo que «D. José I, no dia 3 de Dezembro de 1769, quando saía do Palácio de Vila Viçosa para entrar na Tapada, a divertir-se na caça, levou uma paulada; e levaria mais se não lhe acodem». O caceteiro era um mendigo com intermitências de loucura, um burriqueiro a quem embargaram «uma burra que era toda a sua riqueza». Não havia cúmplices, mas o «regicida a fueiro» – «bem escolhida arma!», exclama Camilo – foi logo acusado pelo Marquês de ser jesuíta e fanático. Transferido primeiro para o Pátio dos Bichos, no Palácio de Belém, foi levado, depois, para o Forte da Junqueira, «onde acabaram de o matar com estrondo».
Camilo tinha pelo fueiro porventura a mesma entranhada admiração e fervoroso respeito que Duarte de Almeida manifestou pelo pendão nacional, ao agarrá-lo bravamente com os dentes depois que o deceparam. É com satisfação evidente que evoca, nas Memórias do Cárcere, os tios de seu amigo Vieira de Castro, «três denodados jogadores de pau» que, «em diferentes anos, quando moços, escreveram com um pau a sua crónica imorredoira» – nas cercanias de Fafe, está bem de ver! O «forte pau de carvalho ou lódão argolado» é, para Camilo, arma nobre, por oposição ao revólver e à navalha, que considera serem «armas dos cobardes». É toda uma filosofia da acção que ele faz questão de explicar: «O Barrosão, quando quer bater ou evitar que lhe batam, estona um esgalho de cerquinho ou marmeleiro, põe-no de molho três dias e três noites em uma poça e depois experimenta-lhe a elasticidade nos joelhos próprios e, se é forçoso, nas costas alheias». Explica ele isto a Brasileiros, em 1880, nos Ecos Humorísticos do Minho, e bem se pode dizer, sem desonra para ele, que as costas de Camilo também não foram alheias a tal experimentação, pelo menos no caso em que, corria o ano de 1847, o famoso Olhos-de-boi, caceteiro e pau-mandado, o derreou de pancada na via pública, a mando do governador civil de Vila Real, muito «agastado com as correspondências que o jovem aprendiz de jornalista estampara contra ele nos jornais portuenses», conforme regista Alexandre Cabral.
A panóplia d’armas de Camilo – além da pena, que é a mais poderosa, já se sabe! – não se reduz, evidentemente, às diversas espécies em que o varapau é prolixo. A clavina há-de ser mesmo a arma que terá feito jorrar mais sangue pela sua obra inteira. Sem contar com o Zé do Telhado e a sua malta armada de bacamartes. Camilo não se coibiu sequer de jogar mão duma das tais «armas dos cobardes» para desfechar um tiro de revólver no peito de um tal Sousa Guedes, só não o matando «porque ele trazia, entre o colete e a camisa, uma couraça de folha de Flandres». É o que diz Camilo – e a gente nem sempre acredita. Mas não se julgue que Camilo é cobarde. Teixeira de Pascoaes, que lhe perscrutou a alma numa obra-prima – O Penitente – é peremptório: «Camilo é medroso, não cobarde. O medo pode ser vencido; a cobardia, nunca, pois deriva duma conformação moral definitiva, como a estupidez».
Aos 55 anos de idade, Camilo está já numa desmoralização enorme, assistindo, melancólico, ao declínio do fueiro, substituído no Minho pela chibata de salgueiro, o revólver e a navalha de ponta e mola. Também «as rixas frequentes já não procedem de questões em partilhas de águas nem de ciúmes. Há inveterados ódios políticos por causa de triunfos e derrotas eleitorais, e mormente por eleições de junta de paróquia». O mundo antigo de Camilo está a desabar: «Já não usam o forte pau de carvalho ou lódão argolado». E mais: «Polpas, inocência, lombo, cavaquinho, tudo passou». Camilo cada vez mais triste…
Mas a quem ele reserva o melhor capítulo no uso e abuso do fueiro é a Frei Justino de Padornelos, o frade mulherengo e com chalaça do Eusébio Macário. É prosa de antologia, que reclama reprodução integral e a cuja leitura devem ser poupados jornalistas, políticos e criancinhas em geral – apesar de o frade ter morto o lobo mau, páginas antes, numa das soberbas descrições de Camilo. Escreve ele assim, acerca do desabusado frade: «Ele tinha as calosidades judiciosas dos estadistas experimentados, a linha recta dos galopins veteranos, arquivava as gazetas que o insultavam numa estante da latrina, e dizia que as correspondências da oposição naquele sítio conseguiam o seu fim de utilidade pública. De resto, uma só vez escrevera num jornal em resposta a um político estes seráficos dizeres: «Apareça o ‘Amigo da Verdade’ e traga três focinhos, se quiser levar um direito para esfoçar no lamaçal da calúnia. Eu não costumo aparar a pena; mando estonar o fueiro de carvalho-cerquinho, e prefiro desancar-lhe o palaio a ensinar-lhe a gramática, senhor ‘Amigo da Verdade’, senhor pedaço de besta”. Saiu isto assim num periódico de Braga; parecia-se com um trecho das Epístolas de S. Cipriano devotado ao martírio»…
VI. Devoção e martírio vêm, aliás, muito a propósito para falar de mulheres na vida e obra de Camilo. É bom pretexto o patusco abade de Padornelos, tão propenso ao «femeaço». A expressão é brutal – eu sei! – mas Camilo explica porquê, numa nota de rodapé: «Em Terras de Barroso e nas limítrofes a mulher em mancebia é uma fêmea; reduzem-na às condições mais fisiologicamente animais que podem. A casada não é fêmea nem mulher; é a patroa. ‘A minha patroa’, diz o marido». Pois Frei Justino de Padornelos – que não era casto nem cauto – há-de ter pelo menos duas fêmeas célebres, com as quais viverá, sucessivamente, em mancebia. A mais experimentada em tais andanças era a Eufémia Troncha, «uma cróia velha com muita experiência sublinhada» e as apetitosas «almofadas frescas das espáduas», que nutria e inflamava o abade com «carícias e guisados» – chamava-lhe «ó meu idolatrado» e «punha-se a catá-lo» – mas nunca conseguiu curá-lo das saudades de Felícia, «a outra bêbeda», a «safardana», como ele dizia muito despeitado por ela o ter trocado pelo José Macário, o Fístula, filho do boticário – tal fora a vontade do irmão dela, brasileiro de torna-viagem que se tornou barão do Rabaçal e não falava o português direito. O pobre do abade até perdeu a vontade de comer – «o Inferno é isto», gemia ele…
Camilo entreteve com as mulheres o mesmo tipo de relações ambivalentes e contraditórias que até ao fim da vida havia de manter com a escola realista ou estilo novo: fascínio e desprezo, atracção e repulsa. Como se, nas mulheres, o espírito e o corpo fossem irredutivelmente contrários e incompatíveis na celebração do amor – como se o espírito impedisse o corpo de consumar a paixão. A experiência do corpo conduz à corrupção do amor e ao tédio, a paixão do espírito conduz, irremediavelmente, à impotência e à morte. Tal parece ser a lógica intrínseca dos romances e novelas camilianos, quase sempre habitados por anjos e demónios, amores de perdição, lágrimas e remorsos, expiação de crimes cometidos, estrelas funestas, casamentos desgraçados, mulheres fatais, desejos brutais e devassidão. Pascoaes, que não hesita em comparar Camilo aos «mártires católicos», sustenta que ele «será sempre um místico enleado na Beleza pura e um Fauno seduzido pela Ninfa que divaga entre as árvores»…
É preciso pois – e tudo isto o recomenda – ter cautela com as mulheres camilianas. Porque ora são demasiado reais, autênticos demónios, verdadeiras serpentes, fêmeas em carne e osso, geralmente com mais carne do que osso; ora são anjos crepusculares, fêmeas angelizadas, místicas donzelas, quase imateriais, em regra com vocação para esqueletos. Quase não há meio-termo. O prazer carnal está nos antípodas da verdadeira paixão, que conduz ao amor impossível ou desgraçado. «Camilo deseja a mulher; mas adorar… só adora a sua imagem luarenta, o anjo pálido…» – é ainda Pascoaes, a sondar-lhe a alma de perpétuo constrangido… Dai os exemplos extremos, por vezes quase caricaturais e mesmo irreais.
Damos de caras, num dos extremos, com a Eufémia Troncha, a Felícia, a jovem Marta de Prazins – a quem uns «embriões de abades», «rapazes vermelhaços» e «grandes parvajolas» chamam «boa pequena, franga e peixão» – e com muitas outras que tais a arremessarem-se despudoradamente aos homens, sejam eles abades, segundos-sargentos, boticários, facultativos, brasileiros de torna-viagem, pedreiros, lavradores ou fidalgos de má cepa estragados pelos vícios. São as fêmeas de Camilo, com mais carne do que osso – ao contrário dele –, quase sempre avantajadas, roliças, cupidíneas, desnalgadas e subjugadas por desejos brutais.
Deparamos, no outro extremo, com a Maria do Adro, a Fani, a Teresa, a Mariana, a Carlota Ângela, a própria Cacilda Arcourt, mulher fatal que um desgraçado amor redime, e tantas outras, ora etéreas, distantes e inacessíveis, ora terrenas mas sublimes no seu calvário amoroso, ora dominadas pela inocência, ora proibidas de tudo pelos pais ou pela condição social, todas elas apaixonadas e infelizes, com os olhos marejados de lágrimas, capazes de renúncia, de de abdicação total, de sacrifícios supremos, dispostas, em suma, a amar «até ao extremo de morrer». São as donzelas de Camilo, mesmo se não são virgens, os seus anjos pálidos e luarentos, protagonistas de paixões impossíveis e amores desgraçados que se situam, todas elas, no outro extremo da irrealidade amorosa.
Há também, evidentemente, a Ana Plácido, toda literatura, a fumar charuto, como a descreve Pascoaes, porventura tributária dos dois extremos, sem dúvida um caso à parte. Companheira de Camilo até ao suicídio deste, foi a mulher dele – talvez não a grande paixão da vida dele –, deu-lhe filhos doidos e acabou por se tornar demasiado real a seu lado – gorda, desleixada e viscondessa. São certamente dela, como salienta Alexandre Cabral, os lamentos da heroína nas Memórias de Guilherme do Amaral: «Não calculas que suplício é este! Se me não amas, não me lamentes… Que querias que eu fosse para ti, quando, nos primeiros dias, me buscavas? Que esperavas tu que eu fosse? Que milagre havia de fazer esta mulher? Querias que eu fosse tua? Tua, com desonra, e sem condições? Serias tu assim feliz? Porque mo não disseste? (…) Eras uma visão amorosa que o anjo dos felizes mostrara à minha alma sedenta. (…) Rompi quantas ligações tinha com o mundo, violei juramentos, vi impassível fechar-se o túmulo dum homem que pedira ao seio da terra que o escondesse para me não ver em teus braços». Camilo melodramático, a flagelar-se, outra vez condoído de si próprio, da Ana Plácido e do morto, o infeliz Manuel Pinheiro Alves… E a desabafar em público. Porque, como diz Pascoaes, um português só desabafa em público, por mais particular que seja o seu desgosto!
VII. Falta, enfim, uma missa negra. Também há, na obra de Camilo. É a tradução – a recriação? – para português da obra anónima Les amoureuses cloitrées, sob o título A Freira no Subterrâneo. Mas o mais interessante não é o que se passa no subterrâneo, é o que se passa no serralho celeste em que foi transformado um convento das carmelitas em Cracóvia. O que viu a freira desgraçada – que, por ter visto, foi emparedada – é que brada aos céus e aos infernos e seguramente fascinou Camilo. Uma verdadeira orgia sado-masoquista, com duas noviças – Santa Ângela e Soror das Cinco Chagas – a serem iniciadas nos mistérios da flagelação e nos amplexos do esposo divino, porque «o Senhor não quer hecatombes de cordeiros e de novilhas: quer que as suas filhas se lhe sacrifiquem até ao sangue»… É sublime e terribilíssimo o que Camilo traduz com todo o empenho do seu excepcional talento. E os capítulos cruciais, iniciáticos – "O recinto da penitência", "As núpcias celestes" e "O aprisco do Senhor" – são dignos de comparação com o que de melhor escreveu o Marquês – desta vez o Divino e não o de Pombal… Camilo, seráfico como Santa Teresa d’Ávila e perverso como o Divino Marquês, adverte que o tradutor se abstém «de indicar as passagens realçadas de maiores belezas, porque lá está o claro entendimento de quem lê para as distinguir; e seria também desacordo antecipá-las, prejudicando o tal qual prazer do imprevisto». Mais perspícuo ele não podia ser, o maganão!
Cómico do Pecado, caricaturista do Mal e dramaturgo da Penitência, como lhe chama Pascoaes, Camilo acumulava gramática à proporção do fel e alimentou toda a vida a perdoável ambição de passar por sábio. Por sobre todas as ironias que desfechava em si próprio e por sobre todos os sarcasmos com que causticava os outros, ele desejava – e merecia – ter um título de nobreza, mas só ao fim de quinze anos de calvário o fizeram visconde, a pedido. Estava já quase cego. Nem por isso deixou de ser quem era, nem como era. «Olha o diabo do velho, com a cara toda mijada» – disse-lhe, um dia, uma jovem e formosíssima peixeira com quem ele se atreveu, ao cruzar-se com ela numa rua do Porto.
Não era Júpiter, mas era um ente mitológico, uma espécie de Centauro desenfreado ou anarquista, de crime em crime, até ao suicídio – é outra vez Pascoaes a falar dele. No cenário espectral de São Miguel de Ceide, consumiu o resto dos seus olhos e dos seus dias. Depois matou-se, o sublime doido deu um tiro na cabeça e matou-se, quando soube que estava a ficar irremediavelmente cego, era tarde, no dia 1 de Junho de 1890. Estava já em sepultura de trevas.
Por variados modos e processos, alguns deles notáveis, Camilo foi transformado, pouco a pouco, numa legenda áurea, numa lenda etérea, num verdadeiro Santo. O que bem se compreende, é mais que justo e de todo merecido. Mas a alma dele é, simultaneamente, tão negra e tão pura, desafiou o demónio tantas vezes e tais, provocou e sofreu tantas dores cá na Terra que, antes de subir aos céus pela mão de Pascoaes, ele bem merece que não lhe roubem – fardado de visconde e no jazigo do seu amigo Freitas Fortuna, no cemitério da Lapa – o prazer duma missa negra...
Cf. Bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco + 365 dias a celebrar os 200 anos de Camilo + O bicentenário de Camilo Castelo Branco assinalado na RTP + Escritor defende mais relevo nas escolas para Camilo Castelo Branco
Nova versão de um artigo de 2015, reescrito e aumentado pelo autor, a propósito do bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco — divulgado no Facebook e aqui partilhado com a devida vénia. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.