«(...) Está maldisposto? Tem a cabeça leve, o estômago em sobressalto? Alguma coisa foi. São estas as três palavras mágicas: alguma coisa foi. Não só são indesmentíveis, como dão direito a concordância: sim, alguma coisa foi.(...)»
Há uma explicação portuguesa para tudo que nunca erra. Seja qual for a circunstância e a gravidade do sucedido esta explicação aplica-se sempre com facilidade e proveito.
Está mal disposto? Tem a cabeça leve, o estômago em sobressalto? Alguma coisa foi. São estas as três palavras mágicas: alguma coisa foi. Não só são indesmentíveis, como dão direito a concordância: sim, alguma coisa foi.
Eis um exemplo dum problema resolvido pelo alguma coisa foi.
Mecânico, depois de uma hora de roda do motor do carro: “Não estou a ver porque é que ele desliga de repente...”
Cliente: “Ai, mas desliga!”
Mecânico: “Parece estar tudo em ordem, amigo.”
Cliente (como um relâmpago, conquistando o troféu dialéctico): “Alguma coisa foi...”
Mecânico (concedendo a vitória): “Sim, alguma coisa terá sido...”
Cliente (abusando da satisfação de ter vencido, esfregando a cara do adversário numa mão-cheia de desperdício): “Mas qual, amigo? Pois se eu vim cá precisamente para saber que porra de coisa é que foi — e o meu amigo não há maneira de me dizer!”
Na acepção mais metafísica o alguma coisa foi satisfaz-se a si mesmo. Porque é que havia de chover tanto no dia em que resolvi sair de sandálias? Alguma coisa foi — e não se fala mais nisso. Porque é que o céu é azul? Porque é que andas tão macambúzia? Porque é que o gato está a recusar estas gambas do Algarve? Porque é que estás a dar esta volta? Porque é que aquele menino está a chorar e a apontar para mim? Alguma coisa foi, alguma coisa terá sido. E não há-de ser nada.
in jornal Público do dia 15 de novembro de 2018. Manteve-se a grafia da norma seguida no original, anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.