Conferência proferida em 11 de abril de 2013 por Fernando Cristóvão, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa.
A irradiação da obra de Jorge Amado em todo o espaço em que é utilizada a língua portuguesa não só foi verdadeiramente notável no seu tempo, mas pode afirmar-se que continua, revigorada, nos nossos dias.
Primeiramente em Portugal, na poderosa influência que exerceu na sua literatura do Neorrealismo, e depois na decorrente das suas obras, especialmente depois que a televisão as difundiu de uma maneira verdadeiramente fulgurante, não só em Portugal mas igualmente no espaço lusófono africano das antigas colónias portuguesas.
Antes porém de analisarmos essa influência, importa clarificar o que se entende por Lusofonia, até porque alguns preconceitos baseados em equívocos a tornaram suspeita de neocolonialismo cultural.
O modo como a entendemos e definimosi, no conjunto dos que a têm estudado com conhecimento de causa e isenção, assenta fundamentalmente na verificação do facto histórico, linguístico e cultural de que oito países e outras regiões têm a língua portuguesa como sua língua materna ou oficial (declarada até explicitamente nas suas constituições políticas) ou de património.
Decisão essa soberana que, para além do vínculo linguístico comum, lhe acrescentou uma estruturação política, a CPLP – Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa.
Boa parte das confusões de alguns sobre a Lusofonia lhes advém da errónea e infeliz formulação de «povos de expressão portuguesa», o que seria autêntica fórmula neocolonialista, pois as expressões culturais e outras de cada país são diversificadas, fundando-se especialmente nelas a sua identidade cultural e política, e que de modo algum podem ser alienadas em favor da portuguesa. Aliás, ninguém dos que defendem a Lusofonia o pretende sequer. Até porque a própria etimologia de Lusofonia significa tão-somente «língua do luso».
De modo ambíguo, alguns como Vieira ou Fernando Pessoa sonharam com um Quinto Império Luso, mas isso pertence ao passado, e para a Lusofonia ninguém o defende no presente, até porque, como dizia ironicamente Agostinho da Silva, já não há lugar para um Quinto Império porque já ninguém pretende ser “quintimperador”ii.
Lusofonia é, pois, na evolução civilizacional e das ideias, o novo nome do transformado Quinto Império.
Não sendo a Lusofonia um conjunto de territórios de «expressão portuguesa», muito menos o é da visão delirante que, recentemente, um jornalista inventou, de que ela pretendia ser uma “Eurofonia”, projeto de língua comum europeia, um tanto á maneira das ambições do esperanto. Esgrimia, assim, contra moinhos de vento, julgando que eles eram gigantes, como o famoso “Cavaleiro da Triste Figura” o citado jornalista, que titulou, indignado: «Eurofonia e Lusofonia, a mesma farsa»iii? Lamentável, até porque em complemento, não faltaram as singulares diatribes contra o Acordo Ortográfico.
Realidade linguística indesmentível, a Lusofonia não ignora, contudo, a existência de laços históricos e culturais advindos de uma colonização portuguesa de séculos, assumidos ou rejeitados livremente pelos países lusófonos, ao mesmo tempo que se verifica também a situação inversa, pois que o português de Portugal também adotou inúmeras palavras, hábitos sociais, ideias, receitas culinárias, etc. oriundas dos povos com os quais esteve em contacto histórico.
Mostram claramente a existência dessa permuta, os levantamentos linguísticos e culturais dos especialistas como David Lopesiv ou Mons. Rodolfo Dalgadov.
Sob este aspeto teorizou Gilberto Freyre no seu conceito de “Luso-tropicalismo”, teorização demasiado abrangente mas que, como lembrou Adriano Moreira numa reflexão sobre o tema, o próprio Gilberto Freyre, quando tomou conhecimento mais direto das colónias portuguesas de África, escrevendo a obra Aventura e Rotina, em 1954, também pareceu ter finalmente introduzido uma correção ao método: o que era «modelo observado» para o Brasil, foi assumido como «modelo observante” destas terras»vi.
Na consideração da base linguística comum, há que ter ainda em conta como antes de Jorge Amado, e depois dele, se fazia a circulação linguística e cultural entre Portugal, Brasil e colónias, para além de regiões independentes, de outras nações, tanto por via oral, escrita e patrimonial, como, sobretudo, a partir do século XIX e, maximamente, nos tempos modernos se faz por vias mais fáceis e comunicações mais rápidas pelo advento das novas tecnologias.
Especialmente a partir do seculo XIX, as comunicações escritas entre os diversos países lusófonos eram feitas privilegiadamente através dos diversos boletins oficiais” que, para além de normas administrativas e notícias, também concediam algum lugar a textos literários e “curiosidades”. Alargaram-se depois esses canais de informação a elementos privilegiados como o famoso Almanach de Lembranças Luso-Brasileirovii nas suas versões de 1855, 1859, 1865 e 1870, ou o Almanach Luso-Africanoviii de 1895 e 1899.
Através desses Almanaques circulavam entre Portugal, Brasil e colónias tanto textos de carácter histórico e literário como descrições de peculiaridades humanas, de fauna e flora, explorando sobretudo o pitoresco e estimulando o conhecimento das comunidades entre si.
Com a independência das antigas colónias, em 1975, a diversidade de comunicações escritas e eletrónicas intensificou-se extraordinariamente na permuta de informações e de eventuais influências.
Se antes o fluxo comunicacional era especial e abundante entre Portugal e o Brasil, depois desta data tornou-se multilateral sem alfandegagem portuguesa, especialmente quando a televisão se tornou acessível a todos.
Foi, pois, dentro deste sistema de comunicações, progressivamente tornado mais largo, rápido e diversificado, que cada vez mais, os escritores brasileiros (não só Alencar ou Machado de Assis) se tornaram conhecidos em Portugal e colónias, de modo muito especial a partir do seculo passado, em que o romance nordestino de 30, em que se integrou e agigantou Jorge Amado, exerceu profunda influência na fase neorrealista da literatura portuguesa, irradiando também para os outros espaços lusófonos.
Historicamente iniciado por José Américo de Almeida, com o romance A Bagaceira, de 1928, o romance nordestino de 30, escancarou as portas para a redescoberta de um novo Brasil através da ficção de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Amando Fontes, Graciliano Ramos e, sobretudo, Jorge Amado. A princípio era o Brasil tropical e exuberante das casas grandes dos senhores e senzalas dos escravos, e das comuns liberdades de costumes, depois, e cada vez mais, a narrativa trágica das secas, dos retirantes, da fome, dos “beatos” apocalípticos, dos pais de santo, dos cangaceiros, da exploração dos trabalhadores nas roças e das fábricas.
Extremamente importante para o nosso neorrealismo foi essa corrente, simultaneamente literária e ideológica, de que Jorge Amado foi a expressão maior. De um Jorge Amado, cuja obra conheceu duas fases:
Uma primeira fase de militância comunista partidária, ideológica, em que nas suas obras de verdadeira pedagogia revolucionária, sobretudo a partir de Jubiabá, de 1935, apela para que se vençam as injustiças sociais através da greve e das estratégias dela derivadas, inculcando a importância decisiva da inscrição no Partido Comunista, exaltando o internacionalismo soviético, em que também o Brasil se deveria integrar, sob a condução de Estaline «guia mestre e pai, o maior cientista de hoje, o maior estadista, o maior general, aquilo que de melhor a humanidade produziu»ix, como escreveu em O Mundo da Paz, em 1950. Logicamente, no ano seguinte, foi-lhe atribuído o prémio Lenine.
Foi esse o tempo que Amado denominaria depois de «sectário», o tempo em que, entre outros escritos e militância ativa, escreveu os romances pouco literários e muito programáticos Seara Vermelha, em 1946, a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade, em 1954, contendo Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite, A Luz no Túnel e, muito especialmente, O Mundo da Paz, de 1951, que pediria depois, por favor, que não reeditassemx.
Uma segunda fase da sua obra ocorre, cronologicamente, depois de criticas que já tinha feito ao dirigismo soviético e, sobretudo, depois da publicação do famoso “Relatório Kruchtchev”, de fevereiro de 1956, sobre os crimes de Estaline e o seu culto da personalidade que abalou o mundo inteiro, até porque logo se seguiu a invasão da Checoslováquia. A partir daí passou a escrever Gabriela Cravo e Canela, em 1958, Velhos Marinheiros, em 1961, Pastores da Noite, em 1964, D. Flor e Seus Dois Maridos, em 1966, Tenda dos Milagres, em 1969, etc., tendo, entretanto, entrado para a Academia Brasileira de Letras em 1960.
Foi este Jorge Amado que do realismo socialista passou depois ao realismo crítico, recatadamente apelidado por ele, no discurso da Academia, à maneira sartreana, de realismo «de compromisso». Porém, coerentemente, nunca deixou a sua militância a favor dos oprimidos que teve tão grande influência tanto no Neorrealismo português como em toda a Lusofonia. Porque, como ele sintetizou no citado discurso na sua tomada de posse da Academia para que se candidatou em 1960:
Quanto ao meu comprometimento e à minha parcialidade, o meu único compromisso, dos meus começos até hoje e, espero, certamente até à última linha que venha a escrever, tem sido com o povo do Brasil, com o futuro. Minha parcialidade tem sido pela liberdade contra o despotismo e a prepotência: pelo explorado contra o explorador, pelo oprimido contra o opressorxi.
Registando essa influência do romance nordestino e, especialmente, do Jorge Amado da primeira fase no Neorrealismo português, assim testemunharam, desde cedo, vários críticos como João Gaspar Simões ou Luís Forjaz Trigueiros. Dizia este, de maneira bem explícita em 1942, nas páginas da revista luso-brasileira Atlântico, comentando as obras de Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fonseca terem eles sido beneficamente influenciados – Soeiro e Redol por J. Amado, Manuel da Fonseca por José Lins do Rego –, acrescentando:
Para nós os que começamos a escrever de há uma década para cá, os escritores brasileiros modernos são uma grande escola. Escola de verdade – a transbordar desse leito caudaloso de mentira e de artificialismo que foi a literatura portuguesa de ficção até há meia dúzia de anos. Escola de simplicidade, de naturalidade – que o mesmo é, escola de vidaxii.
Menos entusiasta, mas reconhecendo igualmente a influência dos nordestinos no Neorrealismo português, Gaspar Simões escreve:
Parece-nos indiscutível a influência de Jorge Amado, não só na obra de alguns dos nossos neo-realistas, que chegaram a impor a sua personalidade, como não poucos que ficaram pelo caminho (…) o Neo-realismo é uma escola literária de países subdesenvolvidos. Na Alemanha e na Inglaterra não houve Neo-Realismo e se nos Estados Unidos existe é porque existem problemas que se confundem com os dos países atrasados, quer no ponto de vista social quer económicoxiii.
E outros testemunhos semelhantes poderíamos encontrar facilmente em autores e críticos da mesma época. António Quadros, por exemplo:
Como a tantos da minha geração, foram os livros de José Lins do Rego, de Érico Veríssimo, de Jorge Amado, de Graciliano Ramos que me abriram os olhos para a realidade cultural do Brasil. Era uma época em que a novelística portuguesa se não tinha afirmado ainda com a pujança de hoje (…). Era a língua portuguesa, mas insuflada de uma outra alma, de uma outra visão, de uma outra experiênciaxiv.
No mesmo sentido, vão as declarações de Alexandre Pinheiro Torres que, interrogando-se sobre o que representou a obra de Jorge Amado para os escritores portugueses considera:
Claro que, em princípio, responderei apenas em meu nome, seu leitor devoto desde os anos 40. E pode ser que, respondendo em meu nome, acabe por responder em nome da grande massa dos seus restantes leitores. Quem sabe? Havia naquela época uma tal unanimidade sobre aquilo que Jorge Amado para nós representava, que bem pode o meu depoimento constituir o eco secreto de uma infinidade de leitores mudos que quase o entronizavam e lhe continuam, apesar de tudo, fiéis.
E passando da afirmação genérica à identificação dos escritores portugueses mais em voga, concretiza a influência fulminante que Jorge Amado exerceu nas Letras portuguesas. As primeiras obras dos neo-realistas, especialmente as de Alves Redol e as de Soeiro Pereira Gomes, vêm já, de algum modo, impregnadas da patética dramaticidade que caracteriza o autor de Mar Morto. Quem é que ao ler Esteiros de Pereira Gomes não se lembrou dos Capitães de Areia, de Jorge Amado? Redol, por seu turno, ao apresentar Gaibéus (1940) exibe a seguinte dedicatória: «Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documento humano fixado no Ribatejo.»’xv.
Declaração esta que segue quase ipsis verbis o que Jorge Amado assinalou na portada do seu romance Cacau.
Álvaro Salema, o principal crítico da página literária do Diário de Lisboa também se alonga na menção de outros escritores que sofreram a influência, sobretudo, de Jorge Amado na sua temática social. Lembra, por exemplo, o testemunho de Namora: «Cabe assinalar com que oportunidade os livros de Jorge Amado jorraram nas letras portuguesas e salutarmente lhes robusteceram a procura de uma seiva revigorada»; de Mário Dionísio que interpretando criticamente Mar Morto, «chegou à verdadeira noção construtiva de obra de arte (…) tem a condição essencial de uma obra de arte, isto é, a consciência da realidade humana e das suas possibilidades»; de Ferreira de Castro, elogiando o fundamental influxo da obra de Jorge Amado na de Alves Redol e, mais largamente, no movimento neo-realista português (…) inegável [influência] exercida sob o autor de A Criação do Mundo [Miguel Torga], pela leitura de escritores brasileiros e, especialmente, de Jorge Amado”; também sobre Urbano Tavares Rodrigues e Luís Forjaz Trigueiros, concluindo: «A crítica literária, secundada posteriormente pela difusão jornalística e outras vias de comunicação social (…) contribuiu, primacialmente, para firmar e dilatar a presença de Jorge Amado em Portugal».
De notar ainda que esta presença dos escritores brasileiros maximamente de Amado em Portugal foi muito facilitada pela criação das coleções editoriais dos Livros do Brasil, iniciados em 1944, e das publicações Europa-América, em 1945, responsáveis pelo maior número de edições portuguesas dos autores citados, e mais facilmente difundidos em África do que através das edições brasileiras, dadas as políticas de edição vigentes.
O Jorge Amado da segunda fase (pós 1956) foi sobretudo o da receção que o romance Gabriela Cravo e Canela teve junto do público em geral, especialmente através da televisão.
Se o escritor ideólogo da primeira fase agradou especialmente aos leitores do Neorrealismo, sobretudo aos marxistas, e com aceitação privilegiada nas antigas colónias portuguesas de regimes políticos da mesma ideologia, já assim não aconteceu com as obras da segunda fase, de aceitação e aplauso geral.
Essa escolha seria, aliás, também a escolha do Jorge Amado da segunda fase, que considerou Gabriela como a sua obra de temática social mais perfeita. Assim o declarou à pergunta que lhe fiz sobre se Gabriela e D. Flôr representavam uma pausa das suas preocupações sociais.
Surpreendentemente, foi esta a resposta:
De todas as minhas obras, talvez seja Gabriela aquela em que o problema social é colocado, a meu ver, mais clara e mais ampla. E também D. Flor. D. Flor é um amplo panorama da vida baiana nas diversas camadas sociais, sobretudo na pequena burguesia, e na vida popular baiana. O que acontece é que elas são colocadas de forma menos estreita, com uma visão muito mais ampla, muito mais complexa, da realidade social e não com uma visão… como dizer… sectária não no sentido tanto da tomada de posição (que a tomada de posição é a mesma em toda a obra) mas na maneira de colocar o problema. Daí às vezes a impressão de uma preocupação social maior, quando a preocupação social é idêntica… sendo possivelmente maior, a meu ver, nos romances últimos, porque muito mais complexa, porque com a visão muito menos limitada por uma preocupação, digamos… panfletáriaxvi.
Em suma, e repetindo as suas palavras: a obra anterior era «sectária» e «de visão limitada». Mais perfeita a da nova fase, aquela onde o problema social é «colocado de forma menos estreita».
Por assim acontecer, quando a telenovela foi emitida em Portugal, em maio de 1977, foi um verdadeiro plebiscito de aprovação que, nas horas de se exibir, quase paralisava o país, como documenta a imprensa do tempo.
De tal modo que muitos foram os estudos sobre este fenómeno, a que os principais órgãos de comunicação social dedicaram páginas especiais, multiplicando comentários, análises e críticas. Por exemplo, o Expresso, o Diário de Lisboa, A Capital, O Jornal, as revistas TVGuia, Maria, Flama, Agência Portuguesa de Revistas, etc.
Como outros também o fizeram, o semanário O Jornal, abriu um grande inquérito interrogando especialmente figuras relevantes da política sobre o tipo de influência que a telenovela “Gabriela” estava a exercer no país. Vítor Dias, do Partido Comunista, como em denegação freudiana, respondeu com não-contida irritação: «Discordo que o país esteja imobilizado ou de cócoras perante “Gabriela”.»xvii.
Seduzidas ou não, as pessoas usavam com naturalidade no convívio, como alcunhas, chamar a alguém “Seu Nacib”, “Seu Ramiro”, “Mundinho Falcão”, como assinalou o Diário de Lisboa em grande reportagem. A popularidade de “Gabriela” e suas personagens era tal que eu próprio, quando fazia conferências na Universidade da Bahía, não me contive que não viajasse para Ilhéus a espreitar, no bar Maron, com outros curiosos que disfarçavam o mesmo objetivo, o dono que serviu de modelo a Seu Nacib, que olhava desconfiado clientes que nunca tinha visto antes. Gabriela não apareceu.
Da popularidade desta telenovela, nasceu também em Portugal, imitando modelos brasileiros, a indústria das telenovelas, que até hoje ainda não parou, e também nasceu outra maneira de os atores no palco, até então fiéis ao teatro declamado e retórico, ganharem naturalidade e vivacidade.
Depois desta tão vasta e importante influência de Amado no país berço da Lusofonia, também foi muito considerável a influência de Jorge Amado nos países lusófonos africanos. Até porque, como atrás foi referido, o conhecimento do Brasil e de alguns dos seus escritores já estava adquirido antes das independências africanas, veiculado, especialmente, através da imprensa e dos citados almanaques, mas quase só entre os eruditos. Mais intensa se tornou depois desses fenómenos televisivos, especialmente no que se refere a Jorge Amado depois de “Gabriela”.
A este respeito, é muito elucidativo o testemunho do escritor moçambicano Mia Couto que, por assim dizer, resume o sentimento geral, ao afirmar esta influência numa palestra proferida em São Paulo do Brasil, em março de 2008. Começando por evocar o conhecimento do Brasil que havia anteriormente, afirma
A minha divida literária com o Brasil começa há séculos quando Gregório de Matos e Tomás Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos literários em Angola e Moçambique. Mas esses níveis de influência foram restritos e não se podem comparar com as marcas profundas e duradouras deixadas pelo baiano. Deve ser dito (como uma confissão à margem) que mais que todas as instituições governamentais juntas (…). Nas décadas de 50, 60 e 70 os livros de Jorge Amado cruzaram o Atlântico (…). É preciso dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam Manuel Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, Drummond de Andrade, João Cabral Melo Neto e tantos outros, tantos outros.
Aliás, declarações semelhantes encontrámos antes desta em todos os países africanos lusófonos.
Por exemplo, sobre a influência, em geral, ou em particular de Jorge Amado e da literatura brasileira em Cabo Verde, Manuel Ferreira lembra o testemunho de Baltazar Lopes, de que, desde a década de 30 nas ilhas cabo-verdianas, eram conhecidos José Lins do Rego, Jorge Amado, Amando Fontes, Marques Rebelo, Gilberto Freyre com quem aliás polemizou. E referindo-se à «intertextualidade afro-brasileira» cita Baltazar Lopes sobre o modo como «a literatura brasileira nos anos 30 nos ajudou a mudar totalmente a face da literatura cabo-verdiana (…)”xviii. Desta revelação era grandemente responsável «um livro magnifico Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, ao lado de volumes densos de investigação e interpretação do malogrado Artur Ramos.».xix.
Na sua conferência em São Paulo, em 2008, Mia Couto refere o eloquente testemunho do escrito cabo-verdiano Gabriel Mariano que não só diz da força persuasiva de Jorge Amado, como escritor como mais ainda capaz de provocar solidariedades culturais profundas:«Para mim, a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus livros e via a minha terra. E quando encontrei Quincas Berro d’Água eu o via na ilha de São Vicente, na minha rua de Passá sabe.»xx.
Quanto à Angola, o poeta e ensaísta angolano Carlos Ervedosa, escrevendo em 1972, depois de historiar os vários movimentos intelectuais angolanos, e referindo-se a escritores dos anos 50, como António Jacinto, Humberto Sylvan, Leston Martins, Bandeira Duarte, etc., afirma: «Eles sabiam muito bem o que foi o movimento modernista brasileiro de 1922, e tinham assimilado a lição dos seus escritores mais representativos, em especial Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Lins do Rego e Jorge Amado.»xxi.
Jorge Amado, cujo valor é hoje igualmente reconhecido por todos, ao ponto de, em gesto verdadeiramente emblemático, ele ter acompanhado o presidente Sarney na sua visita oficial a Cabo-Verde, em 1986.
Solidariedade esta que se estendeu também a São Tomé e Príncipe por ter participado solidariamente, por aclamação, no Movimento de Libertação dessas ilhas.
Ainda a propósito de Angola, Mia Couto lembra que Jorge «não era apenas um autor que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava a África.icxxii. E reforçava esta ideia comum a Moçambique, citando que Craveirinha expressava numa entrevista o mesmo sentimento: «Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve uma influência tão grande que, em menino, eu cheguei a jogar futebol com o Fausto, o Leônidas da Silva, o Pelé. Mas nós eramos obrigados a passar pelos autores clássicos de Portugal. Numa dada altura nós nos libertámos com a ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou a ser um reflexo da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado, então nós tínhamos chegado a nossa própria casa.»xxiii.
Se em Portugal o fenómeno da popularidade que foi o da exibição da telenovela “Gabriela Cravo e Canela” foi de grande intensidade, maior projeção ainda ocorreu nos países africanos de língua portuguesa, aconteceu o que, também lá, deu origem a várias indústrias produtoras de telenovelas, no seguimento do exemplo do romance de Amado… Deste modo o seu autor se tornou popular muito para além do círculo das pessoas cultas, de que é consequência lógica de tal popularidade o facto de em Cabo-Verde o mercado da cidade da Praia ser conhecido por “sucupira”, o de Luanda “Roque Santeiro”, por “Bataclan” uma das discotecas em São Tomé, etc.
Com a popularidade de Amado, e por arrastamento de outros, também aumentou a popularidade do Brasil e o desejo de imitar os seus modelos culturais. E, dentre esses, dois da maior importância: o da língua aculturada, e o da cultura ou culturas próprias assumidas com maior ousadia, livres de quaisquer complexos de inferioridade.
Assim, a natural tendência para adequar a língua portuguesa aos usos nacionais ganhou novo impulso pois até sob o ponto de vista teórico, Jorge Amado incitava a essa aculturação, contando como tal caminho foi percorrido pelo Brasil.
Na entrevista de 1968, Amado relembra o que, em outras ocasiões, já tinha afirmado, e que era exemplo para os africanos:
A língua falada pelo povo deve ser transformada numa língua literária. É preciso entender que, até certo momento, os nossos escritores escreviam numa língua escrita de Portugal. Falavam uma língua falada no Brasil, mas escreviam numa língua escrita de Portugal (…). Eu creio que os escritores de 30, sobretudo os nordestinos, tiveram um papel mito importante em tomar dessa língua falada e fazer dela uma língua literária, ainda bárbara por vezes, mas que já encontra em escritores, como Guimarães Rosa, continuidade ainda mais profunda e mais importante (…) donde a minha preocupação de marcar nos meus romances essa língua falada pelo povo da Bahía, como demarcar certos aspectos da arquitectura, dos costumes, da vida…xxiv
Tal exemplo é um verdadeiro encorajamento a que a Lusofonia se construa na diversidade, dentro da unidade de uma língua em comum, ao mesmo tempo que leva à conservação e valorização das línguas nacionais ou regionais.
Esse é, aliás, um caminho que já começou a ser percorrido há algum tempo. Bons exemplos nesse sentido podem ser aduzidos: Cabo-Verde não se tem poupado à tarefa de valorizar os seus crioulos, sem que haja nisso qualquer prejuízo para uso da língua comum oficial. Deste modo, o crioulo convive com a língua oficial, o Português, em situação de usos sociais diferentes e que, com o tempo, ficará mais claro qual a evolução a seguir.
Segundo o artigo 9.º da Constituição Nacional da República de Cabo-Verde: «É língua oficial, o Português», acrescentando-se que «o Estado promove as condições para oficialização da língua materna cabo-verdiana em paridade com a língua portuguesa«.
A questão tem-se debatido entre os linguistas sobre se esta situação é de diglossia (uso em estatuto desigual) ou de bilinguismo (uso em pé de igualdade), pois o Crioulo é utilizado nas situações comuns da vida da maioria das pessoas e o Português é utilizado no ensino e nas relações sociais e oficiais.
Na opinião autorizada do linguista Manuel Veiga
Quanto ao bilinguismo que se diz existir em Cabo-Verde (Crioulo-Português), convém esclarecer que se trata mais de uma situação de diglossia do que de outra coisa. Com efeito, a vida em Cabo-Verde decorre em Crioulo. Porém, em quase todas as situações formais da comunicação, os letrados, na maior parte das vezes utilizam a língua portuguesa que, aliás, tem mais de cinco séculos de existência em Cabo-verdexxv.
Aos cabo-verdianos cabe a evolução futuro dos seus usos linguísticos mas quer-nos parecer que, sem prejuízo dos crioulos, também o Português de Cabo-Verde irá um dia formar a sua norma nacional, pois a crescente internacionalização dos países e das culturas, ligada ao significativo surto migratório dos cabo-verdianos, algo terão a dizer sobre o previsível futuro do Português em Cabo-Verde.
Quanto a Angola, Beatriz Correia Mendes, na obra Contributo para o Estudo da Língua Portuguesa em Angola, refere os esforços do Instituto Nacional de Línguas de Angola: «Depois da independência de Angola, no esforço de identidade nacional, tem procurado valorizar as suas línguas, de modo a que se tornem no futuro um instrumento de comunicação válido a todos os níveis; [porém] dada a complexidade e diversidade das línguas existentes e seus dialetos, não houve ainda tempo para uma descrição sincrónica profunda.»xxvi.
Espera esta investigadora, com o seu trabalho, ter contribuído «para o estudo do Português angolanizado na sua forma e estrutura, variedade de língua que se vai afastando progressivamente do Português-padrão pelas modificações que consciente ou inconscientemente o bilingue, ou até mesmo o unilingue angolano lhe vão introduzindo».
Em Moçambique, a investigadora Perpétua Gonçalves, da Universidade Eduardo Mondlane, depois de reflexões várias sobre a existência ou não de um Português-Angolano e da situação entre as diversas línguas de Angola, conclui no seu estudo Português em Moçambique – Uma Variedade em Formação:
A concluir esta reflexão, poderemos dizer que as inúmeras lacunas de conhecimento sobre o Português falado dos diferentes países africanos não nos permitem ainda ter uma visão de conjunto sobre a sua situação linguística e para ela tecermos considerações válidas e rigorosas.
Podemos apenas desejar que nos diferentes países africanos sejam incrementados e valorizados os trabalhos de investigação na área da língua portuguesa, de forma a podermos abordar este tema de forma mais consistente num futuro não muito distante.
Pelo menos uma conclusão podemos nós tirar destes e outros estudos: todos eles caminham em sérios trabalhos de investigação para a construção, em bases seguras, de normas ou variedades linguísticas nacionais próprias, o que nos garante que, tal como aconteceu no Brasil, em devido tempo, às três variantes linguísticas atuais do Português (portuguesa, brasileira, galega), outras se irão juntar enriquecendo a língua comum.
Parece vir a propósito aqui lembrar a terminologia difundida pelo Ministério de Educação do Brasil, em “Relatório conclusivo” de 1986, da responsabilidade científica de especialistas dentre os quais sobressaem Abgar Renault, como Presidente, e os estudiosos da língua como António Houaiss, Celso Cunha, Celso Luft, Fábio Lucas, etc.
Terminologia essa que evita atropelamento de ideias sobre o que, na questão linguística, são as variedades ou normas nacionais e a língua comum que as unifica.
Lembra esse texto que «a emergência de variedades postulou a existência de duas ou mais normas cultas dentro de uma mesma língua de cultura«, distinguindo assim, como complementares «o conceito de língua culta conexo ao de norma culta (que) não coincide, pois, com o de língua de cultura. As línguas de cultura oferecem uma feição universalista aos seus milhões de usuários, cada um dos quais pode preservar, ao mesmo tempo, usos nacionais, locais, regionais, setoriais, profissionais»xxvii.
Por outras palavras, a “língua de cultura” que o Português é agrega dentro de si três línguas ou normas cultas, no presente, estando em formação nos países africanos da Lusofonia outras normas cultas que, uma vez consolidadas, ocuparão lugar igual ao do Português de Portugal, do Brasil e da Galiza.
Conjuntamente com a sedução exercida com os seus romances, Jorge Amado mostrou aos países africanos, através do exemplo do Brasil, que é importante eles trabalharem a sua língua oficial, o Português, no vocabulário e no estilo, de modo a ela assumir características linguísticas e culturais próprias, pois é desse modo que melhor se constrói a Lusofonia, em que a unidade da língua de cultura abarque a diversidade das línguas cultas nacionais.
Ocioso será lembrar ainda que, em simultâneo com o exemplo da evolução da língua portuguesa no Brasil, Jorge Amado sugeriu, de várias formas, e com não menos capacidade persuasiva, que os Africanos deviam assumir, sem quaisquer complexos, também as suas culturas próprias, como o fez o Brasil.
Até porque muito da cultura brasileira que admiram foi importada de África. Importação que abrangeu tantos usos e costumes levados pelos escravos negros como ritos de caráter sagrado ou religioso, tais como o dos candomblé (de Angola, do Congo, do Daomé, etc.) e da macumba. Os jogos ou lutas de destreza, como a da capoeira, as festas, danças, comidas, vestuário, etc.
Em Jubiabá, Jorge Amado apresentou um documentário sugestivo desta realidade, desde a invocação dos Orixás e do culto que se lhes presta, à respeitabilidade dos «pais de santo» (Jorge Amado orgulhava-se de ser um deles), às feitas / baianas, etc., tornando o Brasil tão africano e a África tão brasileira…
Em resumo, voltando às afirmações de Mia Couto: «Não há escritor que tenha sido mais lido na África lusófona, e tenha tido mais influência na escrita que Jorge Amado».
Notas:
i Fernando Cristóvão, “Lusofonia”, in Fernando Cristóvão, (dir. e coord.), Dicionário Temático da Lusofonia, Lisboa, Texto Editores, 2005, pp.652-656.
iii Nuno Pacheco, “Eurofonia e Lusofonia, a mesma farsa”, Público, Suplemento, 12-8-2012.
iv David Lopes, A Expansão da Língua Portuguesa no Oriente Durante os Séculos XVI, XVII e XVIII, S.l., s.n., 2000.
v Rodolfo Dalgado, Glossário Luso-Asiático, com uma introdução de Joseph M. Piel, Hamburg, Helmut Buske Verlag, 1921. Reimpressão: Coimbra, 1982.
vi Adriano Moreira, “Luso-Tropicalismo”, in Fernando Cristóvão (dir. e coord.), Dicionário Temático da Lusofonia, op. cit., p.659.
vii Alexandre Magno de Castilho, Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, Lisboa, Typographia Universal, 1855.
viii António Manuel da Costa Teixeira, Almanach Luso-Africano, Guillard Aillaud e C.ª, Paris, Lisboa, Cabo-Verde, 1895.
ix Jorge Amado, O Mundo da Paz, 4.ª ed., Rio, Editorial Vitória, 1953, p.199.
x Idem, ibidem, p. 199.
xi Jorge Amado, Europa-América, Lisboa, 1964, pp. 45-46.
xii Luís Forjaz Trigueiros, Atlântico, n.º 1, Primavera de 1942, p. 152.
xiii João Gaspar Simões, “Jorge Amado, Mestre do Neo-Realismo português,” in Literatura, Literatura, Literatura, Lisboa, Portugália, 1964, p.317.
xiv António Quadros, “O romance brasileiro actual”, in O Romance Contemporâneo, Lisboa, S.P.E., 1964, p. 171-2.
xv Alexandre Pinheiro Torres, “Jorge Amado visto do meridiano português”, in Jorge Amado, Lisboa, Europa-América, 1964, pp. 13-16.
xvi Fernando Cristóvão, “Jorge Amado fala da sua obra”, A Capital – Literatura & Arte, 6 de Novembro de 1968, pp. 1-2.
xvii O Jornal, Lisboa, 21 de Outubro de 1975, pp.14-16.
xviii Manuel Ferreira, O Discurso no Percurso Africano, Lisboa, Plátano, 1989, p.73.
xix Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, I vol., Lisboa, Biblioteca Breve, 1977, p.37.
xx Mia Couto, “E fazer do nosso sonho uma casa”, O Estado de São Paulo, São Paulo, 5 de Abril de 2008.
xxi Carlos Ervedosa, Itinerário da Literatura Angolana, Luanda, Culturangue, 1972, pp.101-102.
xxii Mia Couto, “E fazer do nosso sonho uma casa”, art. cit.
xxiii Idem, ibidem.
xxiv “Jorge Amado fala da sua obra”, entrevista citada.
xxv Manuel Veiga apud Aurélio Fialho Borges dos Santos /J. Malaca Casteleiro, O Crioulo e o Português: Sugestões para uma Política do Idioma em Cabo-Verde, Lisboa, Faculdade de Letras, 2006, pp.39-40.
xxvi Beatriz Correia Mendes, Contributo para o Estudo da Língua Portuguesa em Angola, Instituto de Linguística da Faculdade de Letras, Lisboa, 1985, pp.36,38 e 219.
xxvii Ministério da Educação, Directrizes para o Aperfeiçoamento do Ensino / Aprendizagem da Língua Portuguesa, Brasília, Janeiro de 1986, pp.5 e 6.
texto publicado originalmente na revista "Humanidades", Lisboa, Setembro de 2002