À longa pergunta formulada no título – e como já Pascal e Marx escreveram, respectivamente, «Ninguém procuraria Deus se já não o tivesse encontrado!» e «Todas as sociedades só fazem as revoluções para que já estão preparadas» –, o autor vem dando desde há algum tempo algumas respostas afirmativas, de que lembrarei, neste momento introdutório, apenas duas, sendo uma de carácter mais jurídico-institucional e outra de carácter mais factual-histórico.
A primeira remete para a criação oficial, em 22 de Novembro de 1994, da Associação dos Cientistas Sociais do Espaço Lusófono (ACSEL), em cujos estatutos se pode ler:
«A ACSEL tem como objecto o estudo do "Espaço Lusófono" entendido como a Comunidade dos Países e Povos de Língua Portuguesa, em todos os seus parâmetros (históricos, geográficos, culturais, sociais, económicos, políticos), na perspectiva interdisciplinar das ciências sociais e humanas, contribuindo, no âmbito que lhe é próprio, para que a Lusofonia passe de vaga ideologia ou retórica vã a um Espaço Lusófono realista e desenvolvido que igualitariamente colabore no diálogo humano com todos os outros "Espaços" do mundo contemporâneo.» (Estatutos ACSEL, Art.º 3).
Acrescentarei de imediato que, até à data, as actividades desta ACSEL (cronologicamente, a primeira associação do género criada em Portugal e nos Países de Língua Portuguesa), se tem concentrado na organização anual das Semanas Sociológicas (a próxima, que será a XIII, está programada para o mês de Junho de 2006 no Porto e terá como tema “O 1.º Centenário de Agostinho da Silva – Lusofonia e Ecumenismo Universal”) e na publicação, nas Edições Universitárias Lusófonas, dos seguintes livros e revistas:
– F. Santos Neves et alii, A Globalização Societal Contemporânea e o Espaço Lusófono: Mitideologias, Realidades e Potencialidades (Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 2000);
– F. Santos Neves et alii, O Lugar e o Papel das Ciências Sociais e Humanas (Edições Universitárias Lusófonas, 2.ª ed., Lisboa, 2002);
– Campus Social, Revista Lusófona de Ciências Sociais, n.ºs 1 e 2 (Lisboa, 2005);
– Res-publica, Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais, n.ºs 1/2 e 2/3 (Lisboa, 2005/6).
Quanto à segunda resposta, de carácter mais factual-histórico, trata-se da criação, em Lisboa, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) no princípio dos anos 90 do século XX, que entretanto se tornou na maior universidade privada portuguesa e no centro de um grupo (o Grupo Lusófona) que integra já actividades e estabelecimentos de ensino superior, além de Portugal e do Noroeste da Península Ibérica, no Brasil, em Moçambique, em Angola, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde.
Acrescentaria ainda, eventualmente com algum interesse filológico-linguístico e histórico, que os dicionários da Língua Portuguesa só terão começado a registar o vocábulo Lusofonia e derivados depois dessa data da fundação da ULHT e das actividades e publicações do autor desta comunicação – a quem, na altura, objectaram a utilização de tal palavra, até porque, diziam, «não soava bem»...
Mas não é só noutras paragens que continua a haver desconhecedores de tais factos; ainda há pouco surgiu em Lisboa um meritório Dicionário Temático da Lusofonia, dir. & coord. por Fernando Cristóvão, Texto Editores, em que de tais factos os autores são simplesmente ignorantes (o que, como se sabe desde há muito, diz algo e negativamente mais do que simplesmente desconhecedores...).
Fiquem desde já sossegados que não vos vou falar de todas as “Horas” anunciadas: “Hora da Globalização”, “Hora da União Europeia”, “Hora da Ibero-América”, “Hora do Mercosul”, “Hora da Lusofonia”..., mas apenas e sumariamente desta última..., embora não resista à tentação, nalguns casos bem divertida e até anedótica, de previamente fazer algumas brevíssimas observações.
Sobre a Globalização-Mundialização nada mais farei do que chamar a atenção para os imensos, embora de valor desigual, materiais resultantes de todos os Fóruns Sociais Mundiais já realizados, e que têm o seu epicentro original na cidade brasileira de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e para um recente e insuspeito livrinho do prémio Nobel de Economia J. Stiglitz, intitulado Globalisation and its Discontents (Penguin Books, Ltd., 2003).
Sobre a União Europeia, de cujo “modelo”, consubstanciado nos ideais da Democracia e dos Direitos Humanos por um lado e, por outro lado, do Desenvolvimento Económico e Social, só alguns europeus desvairados e alguns americanos interesseiros continuam a maldizer, recordaria apenas sintomaticamente o exemplo de Portugal: depois de ter passado pelo que então designei de «doença infantil do europeísmo apátrida», muitos portugueses começaram a mergulhar no que agora venho designando de «doença senil do antieuropeísmo patrioteiro».
E aproveitaria ainda para repetir o que, quase lapalicianamente ou talvez não, costumo dizer aos meus concidadãos: é enquanto portugueses que devemos ser europeus, ibero-americanos e lusófonos como é enquanto lusófonos, ibero-americanos e europeus que devemos ser portugueses...
Sobre a Ibero-América, referirei apenas a seguinte cena caricata, sucedida no megaencontro de reitores ibero-americanos, em Sevilha, 2005, promovido pelo Banco Santander, patrocinador do Portal Universia: numa das sessões presidida por uma reitora brasileira que falava em castelhano, eu ingenuamente recordei que no mundo ibero-americano existem, pelo menos, duas línguas de dimensão universal, a saber, o espanhol e o português, acrescentando, aliás, com alguma simpática ironia, que esperava que nunca os brasileiros, dada a sua finalmente auto e hetero-reconhecida qualidade de grande potência mundial, tivessem a tentação natural de impor a toda a Ibero-América a sua língua, que, como todos sabem, é o português, em mais bonito... E será que poderá ter qualquer actualidade o aviso que então amigavelmente lancei: 'Caveant... Lusophoni'?
Sobre o Mercosul, que, contra os sábios ventos e marés, endógenos e exógenos, «apesar de tudo se vai movendo» e até crescendo de ambições e de dimensão, formularia apenas o seguinte voto: que o Brasil, pela sua dimensão sul-americana e mundial condenado a não poder deixar de ser o grande motor do Mercosul, não permita que este subcontinente volte a ser mera “horta” dos Estados Unidos e também, já agora, que linguisticamente não permita que, aqui e pelo mundo, se continue a falar muito mais de “Mercosur” que de Mercosul...
E também pelo mundo se ouve por vezes dizer que se ensina governamentalmente mais castelhano no Brasil do que português nos demais países latino-americanos...
Venhamos, então, à Hora da Lusofonia (e podemos, inclusivamente, esquecer-nos de uma coisa chamada CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, oficialmente criada em Lisboa em 1993, mas que, para já, é mais um nado-morto que um nado-vivo e releva mais daquilo que antigos filósofos designavam não de «seres reais» mas de «seres de razão» e, entre estes, de «seres de razão sem fundamento na realidade»).
Alertando, desde já, que a Hora da Lusofonia aqui proclamada não só não é impedida por ou impeditiva de quaisquer das outras “Horas” já citadas (a “Hora da Globalização”, a “Hora da União Europeia”, a “Hora da Ibero-América”, a “Hora do Mercosul”, para referir apenas estas) mas, ao contrário, só por elas é tornada possível e interessante, ao mesmo tempo que é 'conditio sine qua non' para que todas elas não se tornem uma ilusão ou uma alienação.
Sobre uma tal Hora da Lusofonia, peço licença para ler o editorial com o mesmo título que escrevi para o n.º 3/4 de Res-Publica – Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais, que acaba de ser publicado (Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2006):
«Começando pelo que nem sequer é o mais importante (sendo, obviamente, de grande importância até porque, de algum modo, é o “santo e a senha” de tudo o mais...), já se deram conta os próprios lusófonos do lugar de grande “língua universal” que é, cada vez mais, o lugar da língua portuguesa no mundo (lugar que receberia ainda significativo empurrão se o Brasil vier a ocupar, como seria normal e se espera, um lugar permanente no Conselho de Segurança da renovada ONU)? Como Fernando Pessoa já previa nos anos 20 do século passado, enquanto língua falada em todos os continentes e enquanto língua falada por uma grande potência, a língua portuguesa está destinada a tornar-se uma das pouquíssimas “línguas universais” do século XXI, categoria a que nem mesmo línguas tão prestigiosas como o francês, o alemão, o italiano, o espanhol, o russo, o chinês, o hindu ... têm evidente acesso. E, entretanto, os próprios lusófonos por vezes até parecem complexados de o serem e pouco fazem para que a língua portuguesa ocupe, culturalmente, turisticamente, politicamente, etc., o lugar que por direito próprio lhe compete no mundo actual.»
A Hora da Lusofonia é a hora de abandonar, definitivamente, todas as mitideologias do passado, do presente e do futuro, desde as saudades dos reais colonialismos lusíadas de antanho até às vontades de imaginários (quintos ou outros) impérios felizmente utópicos e ucrónicos, no sentido mais prosaico dos termos.
A Hora da Lusofonia é a hora de fazer a pertinente análise sociocultural, económico-política e geoestratégica do mundo contemporâneo e nele descobrir, lúcida, activa e organizadamente, o lugar insubstituível da Lusofonia, para bem de todos os “Espaços Lusófonos” e para bem de todo o “Espaço Humano...”
Já há imensas “lusofonias”, só que não há a Lusofonia; já há imensas e porventura até demasiadas “coisas” lusófonas, só que falta ainda a “Coisa” da Lusofonia, sem a qual tudo o mais nunca passará de bricabraque ou de um conjunto de inúteis e até contraproducentes bugigangas...
E a tão celebrada “Hora” da globalização ou das globalizações (incluindo a “canónico-ortodoxa” e a “heterodoxa e resistente alterglobalização”) deveria ser também, num caso como noutro, embora por razões, intenções e empenhos diversos, a Hora da Lusofonia!
«Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer!» (Geraldo Vandré, Música Popular Brasileira)
«É a Hora!» (Fernando Pessoa)
Para o mais, limitar-me-ei, aqui e agora, neste Fórum Internacional de Ciências Sociais e nesta área temática da Globalização e Regionalização, a propor-me demonstrar a seguinte “tese” (que obviamente aceita e agradece discutir quaisquer outras teses e antiteses, em ordem à “Síntese” final):
Mais que projecto ou questão cultural e até «linguístico-literária», a Lusofonia é, além de um importante projecto ou uma importante questão de Língua, sobretudo um importante e decisivo projecto ou uma importante e decisiva questão de estratégia geopolítica, com inevitáveis incidências económico-socioculturais. O que também deveria ser válido para a designada CPLP, que deveria adoptar o nome menos restritivo de União ou Comunidade Lusófona.
Uma primeira consequência da heterodoxa afirmação de que a Lusofonia não é prioritariamente um projecto ou uma questão cultural nem sequer prioritariamente um projecto ou questão linguístico-literária foi para mim a não aceitação daquilo que, há uns anos, para todos, em Portugal, constituía um dado adquirido (e que ainda hoje, por vezes, se ouve, mas penso e espero que já só por inércia!), a saber, a existência de «povos e literaturas africanas ou americanas de expressão portuguesa», que eu fui paulatinamente ajudando a substituir por «povos e literaturas africanas ou americanas de língua portuguesa».
Ou seja, a língua, de mera expressão cultural de um povo (no caso, o povo português), que inegavelmente também é, começou a ser vista também como o possível instrumento de comunicação de vários povos e de várias culturas e de várias literaturas, etc., e utilizável para a obtenção dos mais variados objectivos, como, por exemplo, a unificação de um país, a construção de um Estado, a afirmação de um espaço (na circunstância, o “Espaço Lusófono”), etc. E quem, hoje, ousaria falar de “países africanos (ou de “país sul-americano, vulgo Brasil...) de cultura ou de literatura portuguesas”, em vez de "países africanos de língua portuguesa”?
Acrescentarei que esta visão “meramente” instrumental da língua portuguesa me foi pela primeira vez inspirada pelo grande mestre Manuel Ferreira, não obstante os títulos historicamente situados e ultrapassados das suas mais que todas pioneiras e fundamentais obras de “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”!
Toda uma outra coisa seria afirmar que a Lusofonia deveria constituir um dinâmico e permanente diálogo de interculturalidades lusófonas e que o futuro de todos (digo todos!) os países e povos lusófonos (o seu futuro de influência no concerto ou desconcerto das nações, e também o seu futuro de desenvolvimento e de democracia) passa pela Lusofonia integral e crítica, de que falaremos adiante. E isto é válido para Portugal (que só poderá ser plenamente e interessantemente europeu enquanto lusófono, embora também só possa ser plenamente e interessantemente lusófono enquanto europeu), para o Brasil (que só poderá ser plenamente e interessantemente “mercosulista”, e até uma das nações liderantes do novo grupo de grandes nações emergentes (na Europa, tornou-se vulgar a sigla “BRIC”, formada pelas iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China...) enquanto lusófono, embora também só possa ser plenamente e interessantemente lusófono enquanto “mercosulista”, etc), para Angola (que só poderá tornar-se plenamente e interessantemente africana e até um país africano de referência enquanto lusófona, embora também só possa ser plenamente e interessantemente lusófona enquanto africana), o mesmo devendo dizer-se, 'mutatis mutandis', relativamente a todos os demais países e povos lusófonos (Galiza e Norte de Portugal incluídos, que só poderão tornar-se plenamente e interessantemente ibéricos e europeus enquanto lusófonos, embora também só possam tornar-se plenamente e interessantemente lusófonos enquanto ibéricos e europeus).
Como projecto ou questão de língua (o que é algo diverso da «questão propriamente linguística e literária»), a Lusofonia tem de ser encarada, antes de mais, como a justa avaliação e a consequente valorização da língua portuguesa no mundo contemporâneo.
Foi, aliás, neste sentido que, em Carta Aberta ao Presidente Lula (que além de publicada em vários sítios, fiz questão de entregar em mão no Palácio do Planalto), me permiti chamar a atenção para o facto de o Espaço Lusófono utilizar uma mesma língua, qual, muito mais que a Última flor do Lácio, inculta e bela, segundo os famosos versos de Olavo Bilac, é hoje, objectivamente e segundo a não menos famosa análise e profecia de Fernando Pessoa, «uma das poucas línguas potencialmente universais do século XXI» (enquanto língua falada em todos os continentes e com um grande país, o Brasil, seu falante), podendo tornar-se um instrumento inigualável de comunicação e de desenvolvimento entre os homens».
A propósito do que designei «justa avaliação e consequente valorização da língua portuguesa no mundo contemporâneo», tal avaliação e valorização devem começar nos próprios lusófonos, cidadãos e Estados, superando ridículos complexos de inferioridade não realistas ou gestos de delicadeza deslocada e identificando os verdadeiros problemas e tarefas de uma política efectiva da língua portuguesa.
Darei, a granel e sem nenhuma ordem hierárquica, alguns exemplos, principiando com o exemplo da minha própria universidade. De início, eu mesmo alertava recorrentemente, para evitar mal-entendidos desvirtuadores:
«A Universidade Lusófona não é uma universidade da língua portuguesa, mas, sim, uma universidade de língua portuguesa..., porque se encontra num espaço onde se fala o português e não o chinês, o russo, o catalão, etc.»
Progressivamente, sem cair no patrioteirismo que até na célebre frase de Fernando Pessoa – Bernardo Soares A minha Pátria é a Língua Portuguesa se pode infiltrar, fui adquirindo uma dimensão mais objectiva, e a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, sem deixar de ser, essencialmente, uma universidade de língua portuguesa, não teve pejo em tornar-se também uma universidade da língua portuguesa, e isto, mais uma vez digo, sem cair em nenhuma espécie de vetero ou neocolonialismo, de vetero ou neoprovincianismo ou de vetero ou neolusitaneirismo.
Assim entendida, a língua portuguesa poderá e deverá tornar-se uma das grandes (e certamente a mais característica das) riquezas de todos os países e povos lusófonos, e todo o investimento na sua cultura e difusão deveria aparecer como o investimento mais inteligente e mais rendível.
Por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados lusófonos poderiam e deveriam mostrar era assegurar a existência de professores da Língua Portuguesa em todos os espaços do espaço lusófono e no máximo possível de espaços do mundo contemporâneo; por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados lusófonos poderiam e deveriam mostrar, ultrapassando os ridículos preciosismos e provincianismos das guerras do alecrim e da manjerona das “Academias” e dos “Intelectuais”, designadamente das praças portuguesa e brasileira, era assegurar o cumprimento de um “acordo ortográfico lusófono” (o já proposto ou outro, mas que seja!), prova dos noves e condição 'sine qua non' de qualquer Lusofonia da Língua, tanto no âmbito dos espaços lusófonos como fora deles; por exemplo, o mínimo de inteligência (até económica) que os Estados lusófonos poderiam e deveriam mostrar era tornar obrigatória a utilização da língua portuguesa em todos os lugares e encontros internacionais e não permitir, sob nenhum pretexto, que uma das línguas mais faladas do mundo seja constantemente reduzida ao lugar e papel de uma língua insignificante ou inexistente (o que também, aparentemente, se verificaria neste internacionalíssimo Fórum das Ciências Sociais). E que dizer quando em recente e grandioso fórum ibero-americano (Sevilha, Maio de 2005) se ouviram oradores e presidentes lusófonos de mesas-redondas «hablar en español» e “nuestros hermanos” ficarem surpreendidos ao ser-lhes chamada a atenção para o facto de que, no espaço ibero-americano, não existe só uma língua de carácter universalista, mas pelo menos duas, a saber, o espanhol e o português?
Com algum escândalo, mas penso com toda a razão lusófona e humana e sem nenhum provincianismo patrioteiro, adaptei e soltei aos incautos o alarme clássico: 'Caveant ... Lusophoni'!
No recomeço das suas actividades, a partir das instalações cedidas pela Universidade Lusófona, o Ciberdúvidas (que mais uma vez saúdo e a que mais uma vez auguro os maiores êxitos) publicou um emblemático texto de José Saramago, emblematicamente intitulado: Uma língua que não se defende, morre.
E o brasileiro Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa até poderia constituir um dos grandes marcos simbólicos da Lusofonia enquanto projecto ou questão de língua...
É enquanto projecto ou questão de estratégia geopolítica que a Lusofonia tem a sua primordial razão de ser, para realização própria de todos os países e povos lusófonos e como contributo para a realização do “Fenómeno Humano” universal ou, em linguagem menos teilhardiana e mais objectiva, para a realização equilibrada do globalizado mundo contemporâneo.
Para a descoberta e a prática sadias e descomplexadas desta vertente geostratégica ou geopolítica da Lusofonia, que dá sentido e conteúdo a todas as outras, essencial é o recurso permanente a uma Crítica da Razão Lusófona, a qual, à semelhança do que o filósofo Kant pretendeu fazer tanto para a “Razão Pura” como para a “Razão Prática”, estabeleça as condições de legitimidade, de possibilidade, de necessidade e de urgência da construção da Lusofonia, que, também kantianamente, poderiam intitular-se de “Prolegónemos a toda a Lusofonia Futura”.
Aqui e agora, e sem prejuízo da importância vital de todos os países e povos lusófonos e sem deixar de referir, por exemplo, a incompreensivelmente auto e hetero-esquecida lusófona Galiza (lusófona e de algum modo a origem e a mãe de toda a Lusofonia) ou Angola, aqui do outro lado do mar (destinada a tornar-se em breve um país lusófono de referência para toda a África), e todas as diásporas antigas e modernas (desde Goa e Macau até às comunidades emigrantes, agora não só nem sobretudo portuguesas), limitar-me-ei a alguns comentários breves sobre os casos de Portugal e do Brasil, por razões de tempo e de lugar e também porque da parafernália da retórica luso-brasileira fazem parte esses dois indestrutíveis mitos que dão pelo nome do «passado glorioso de Portugal» e do não menos «glorioso futuro do Brasil» e porque, sem menosprezo de todo o lugar e papel dos outros países e povos lusófonos, Portugal e Brasil têm de ser, nas presentes condições, os primeiros grandes motores da Lusofonia e serão os grandes responsáveis históricos do seu possível êxito e do seu não impossível fracasso [desgraçadamente, as actuais classes dirigentes tanto de Portugal como do Brasil parecem longe de estar ao nível deste desafio histórico].
Relativamente a Portugal e para além de um «imperial-saudosismo» ou de um «colonial-complexismo» que relevam mais da psicanálise que de qualquer análise económica ou política, há que ressaltar o nauseabundo provincianismo que já antes chamei a «doença infantil do europeísmo» ou a «concepção
novo-riquista, pacóvia, discipular e schengeniana da integração europeia de Portugal», como se, por ser e para ser europeu, Portugal devesse deixar de ser luso e lusófono e como se até não fosse a Lusofonia o grande e específico peso de Portugal «na balança da Europa e do Mundo». Com esta «doença infantil do europeísmo apátrida» é, paradoxal mas degenerativamente, possível coexistir o que também já designei de «doença senil do antieuropeismo patrioteiro» e sobretudo é perfeitamente compatível a visão americano-atlantista da política externa portuguesa, cuja «cegueira lusófona» tem sido à prova de todas as mudanças dos respectivos ministros e parece verdadeiramente configurar um triste “desígnio nacional”...
[Já agora ousemos esperar que o Prof. Freitas do Amaral, actual ministro português dos Negócios Estrangeiros, que até foi capaz de criar em Portugal a primeira faculdade de Direito verdadeiramente nova, também seja capaz de criar uma verdadeiramente nova política lusófona, que, a bem dizer, não deveria situar-se, à semelhança da política europeia, no Ministério dos Negócios Estrangeiros...]
A tão aclamada «dimensão marítima de Portugal» e o tão aclamado «regresso de Portugal ao mar» (e até a badalada caracterização de «Portugal, país atlântico da Europa») tanto podem indicar uma grande e insubstituível via de progresso do «Portugal Europeu» (um antigo professor da minha universidade, Virgílio de Carvalho, até já cunhou a feliz expressão da «Descoberta do Caminho Marítimo de Portugal para a Europa!») nos seus variados aspectos como uma falácia a que recorreram os “Inimigos da Europa” e os “Amigos da América” com um “(Trans)Atlantismo” que tresanda a “Guerra Fria”, a luta contra a “velha Europa”, a “invasão iraquiana”, etc.
Que, em todo o caso, nunca deixe de ser dita uma coisa que deveria ser de uma clareza meridiana para todos os portugueses: tal “(Trans)Atlantismo” nada tem que ver com o “Atlântico” que Fernando Pessoa tão belamente cantou como o “Mar Português” (Ó Mar, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!) ou com os “Mares nunca dantes navegados” da epopeia de Camões ou com as tão líricas palavras “Da nossa língua vê-se o mar!” de Vergílio Ferreira... e que eu próprio já designei como o “Mar Lusofonês”...
Relativamente ao Brasil, tem sido notória a insensibilidade para não dizer alergia lusófona generalizada de todas as suas elites, que não se dão conta de que, na geopolítica multipolar que se desenha e se deseja, a Lusofonia constitui chance única para o Brasil poder vir a situar-se no concerto das grandes potências do século XXI.
O Brasil, por ser e para ser o terceiro grande pilar autónomo do mundo ocidental, ao lado da União Europeia e dos Estados Unidos, não precisa de deixar de ser nem pode deixar de ser “brasileiro” e “lusófono”. Enquanto grande potência emergente do século XXI, o Brasil deverá cumprir a sua missão não só de indispensável motor da Lusofonia mas também, e simultaneamente, de reequilibrador, a nível universal, juntamente com outras grandes potências como a Europa, a Rússia, a África do Sul, a China e a Índia, dos mais que evidentes e trágicos usos e abusos da autodeclarada e hetero-aceite única superpotência actual, que são os Estados Unidos da América do Norte.
A era “Lula” já deu sinais e passos importantes nestas direcções geostratégicas a que apenas tem faltado, esperemos que não seja por muito mais tempo, a marca da Lusofonia! Até porque, como com alguma solenidade mas sem nenhum exagero e oxalá não sem nenhum efeito, tive ocasião de dizer na grande metrópole da América Latina e na maior metrópole lusófona do mundo, que é São Paulo, aquando das celebrações dos 500 anos da descoberta do Brasil, «a Lusofonia ou será brasileira ou nunca será, e o Brasil ou será lusófono ou nunca será»!
Uma tal Lusofonia e uma tal União ou Comunidade Lusófona em nada se opõem, antes pelo contrário, ao diálogo omnitotidimensional com as já mencionadas e outras comunidades humanas e geopolíticas do mundo contemporâneo, opondo-se, sim e frontalmente, à “Loucura Terrorista” e à “Histeria antiterrorista” que o dia 11 de Setembro de 2001 desencadeou nos Estados Unidos e na Humanidade e que, uma e outra, constituem, por razões diversas mas com possíveis idênticos resultados, sérias ameaças de regresso à barbárie, mediante o incumprimento ou o esquecimento da tão longa e tão difícil conquista que foram o Estado Democrático de Direito e o primado do Direito Internacional sobre a força bruta bem como da única e para todos (“terroristas”, “não-terroristas” e “antiterroristas”, incluindo qualquer potência ou superpotência de ontem, de hoje ou de amanhã) obrigatória “Carta Magna” da Civilização que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Só uma tal Lusofonia ou uma tal União ou Comunidade Lusófona assim cultural e linguística e assim geopolítica e geostratégica poderá tornar-se a via real, senão única, de desenvolvimento humano sustentável e de legítima afirmação internacional de todos os países e povos lusófonos, assim aparecendo também, segundo a formulação da tese inicialmente proposta, que «Mais que projecto ou questão cultural» e até «linguistico-literária», a Lusofonia é, além de um importante projecto ou uma importante e decisiva «questão de língua», sobretudo um importante e decisivo projecto ou uma importante «questão de estratégia geopolítica» com inevitáveis incidências económico-socioculturais. O que também deveria ser válido para a CPLP, que deveria adoptar o nome menos restritivo de União ou Comunidade Lusófona.
Ou seja, como já foi dito, não só a Hora da Lusofonia não é impedida pelas (ou impeditiva das) Horas da Globalização, da União Europeia, da Ibero-América, do Mercosul e outras legítimas Horas, mas, ao contrário, é por elas tornada possível e pertinente, e é também 'conditio sine qua non' para que as mesmas não se tornem uma ilusão ou uma alienação. Por outras palavras: a Hora da Lusofonia poderia constituir um dos “casos de estudo” mais interessantes do neologismo que dá pelo nome de “Glocalização”.
'Quod erat demonstrandum' e que eu desejo tenha conseguido demonstrar e, se não convencer, pelo menos fazer passar a minha convicção e a minha esperança.
Muito obrigado! Muchas gracias! Fernando dos Santos Neves Reitor da ULHT - Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa e Doutor em Ciências Sociais Aplicadas
P. S. – Sobre todas as questões da Lusofonia tem o autor recorrentemente falado e escrito nos últimos anos, designadamente, in:
– Para Uma Crítica da Razão Lusófona, Onze Teses sobre a CPLP e a Lusofonia (Edições Universitárias Lusófonas, 2.ª ed., 2002).
– A Globalização Societal Contemporânea e o Espaço Lusófono: Mitideologias, Realidades e Potencialidades (Edições Universitárias Lusófonas, 2000).
– O Lugar e o Papel das Ciências Sociais e Humanas (Edições Universitárias Lusófonas, 2.ª ed., 2002)
– Res-Publica, Revista Lusófona de Ciência Política e Relações Internacionais, n.º 2/3 (“Dossiê Lusofonia)
– Para um Direito Comunitário Lusófono?, in: Direito Natural, Justiça Política, Vol. 1, Coimbra Editora 2005.
comunicação lida no Fórum Internacional de Ciências Sociais – Área de Globalização e Regionalização, ocorrido de 20 a 24 de Fevereiro de 2006, em Buenos Aires